domingo, 30 de novembro de 2003

Aos amigos dos noivos

Ele pensou em tudo, pois haveria de ser algo bem romântico. E não bastava ser romântico (como era difícil namorar alguém especial!), tinha que ser o romantismo certo, a expressão que tocasse o coração dela com singeleza mas profundidade. Providenciadas as alianças ele arquitetou o melhor momento de fazer o pedido. Caminhou de um lado para outro na casa e acabou parando na cozinha. Ele sabia cozinhar, e fazê-lo para ela era sempre um prazer. Pensou num cardápio e comprou pratos novos, com tulipinhas desenhadas na borda porque são as flores preferidas dela. O fundo musical também já estava planejado. Restavam as flores e no meio delas, aquele sorriso que o fazia suspirar.

Tudo pronto, preparava-se para ir à floricultura quando recebeu a ligação dela: “Não há passagens para hoje... então só vou poder ir amanhã cedo, tudo bem?”. Ele disse “tudo bem” mas o chão fugiu sob seus pés. É claro que não estava tudo bem. Ele entendia a situação mas custou a aceitá-la. Voltou para casa, olhou os pratos...sentiu mais fortemente a frustração de não tê-la ali (e sempre se surpreendia ao constatar que essa sensação podia ser mais forte).

Há exatos setes meses eles deram seu primeiro beijo. Encontraram-se quase acidentalmente: ele trocara o carro e de última hora resolveu viajar até Natal. Lá chegando foi ver uns amigos, que não via há algum tempo. Aquelas decisões que se tomam sem planejar, sem pensar muito. E ela estava lá num vestidinho preto, o olhar meio triste mesmo embaixo daquele sorriso (ahhh...), como que carregando uma dor secreta. Trocaram umas poucas palavras e ele se foi. Os amigos porém, que conheciam bem a ambos, insistiram que eles combinavam direitinho, que dariam um par perfeito. Mesmos gostos, valores, mesma forma de encarar a vida, mesmo padrão na busca da companhia ideal. A partir daí os amigos tiveram uma importância fundamental: como conselheiros, secretários (e-mails, telefones), relatores da vida alheia (e tinham que repetir mil vezes com todos os detalhes possíveis e inimagináveis as características um do outro), incentivadores (como é dura a timidez!) e torcedores exaltados (com mil coisas afins que não caberiam em dez mil parênteses). De tanto investirem propaganda, empenho e paciência, acabaram por testemunhar o dia em que, finalmente, eles começaram a namorar. E tudo que ele queria – se aquele ônibus importuno tivesse deixado - era dizer-lhes que não eram mais amigos de um casal de namorados; eram amigos dos noivos!

Por certo eles se sentiriam felizes e privilegiados. Talvez até dissessem como João Batista: “o amigo do noivo, que está presente e o ouve, alegra-se muito com a voz do noivo. Assim esta alegria já se cumpriu em mim.” (João 3:29). Interessante perceber que a figura do amigo do noivo já existia há muito tempo, porém num contexto mais específico. À época de Jesus, a maior missão da vida de um pai hebreu era casar seu filho. Para tanto, ele escolhia o servo de maior confiança de sua casa para essa missão: encontrar uma noiva ideal para o herdeiro de todos os bens da família, transformando-se, portanto, em seu depositário. O servo encarregado dessa delicada missão era chamado “o amigo do noivo”, e a partir de então deixava todos os seus afazeres ordinários, domésticos ou rurais, para dedicar-se tão somente a sua missão: achar uma jovem adequada, “apaixoná-la” por alguém que na maioria das vezes ela nunca tinha visto em sua vida, e obter seu consentimento e o da sua família para levá-la até a casa ou o país onde morava o filho do seu senhor.

No texto do evangelho, flagramos João Batista num momento de crise de popularidade. Pouco tempo antes, pessoas dos lugares mais distantes, dos mais altos cargos políoticos ou religiosos, do mais rico ao mais pobre procuravam-no para ouvir sua pregação e serem batizados por ele. Até que um dia apareceu Jesus e “roubou o foco da câmera”, transformando-se na principal figura do cenário religioso de Israel. Os seguidores de João, chateados com aquele repentino fracasso, foram até ele dizendo que Jesus, aquele a quem João havia batizado (e frisaram bem essa parte para deixar subentendido que Jesus devia submissão à João Batista), estava atraindo a atenção de todos os seguidores que antes “pertenciam” a João, e batizando-os, sendo que isso não era justo, pois aos seus olhos, João era o Mestre. Mas João respondeu usando a figura de linguagem que todos à época entederam muito bem: “Quem tem a noiva é o noivo, eu sou simplesmente o amigo do noivo, e minha alegria é cumprir minha missão”. Com isso João queria dizer que, justamente naquele momento de aparente fracasso, é que ele estava mais feliz, pois tinha conseguido conduzir a noiva, Israel, ao noivo, Cristo. Portanto chegado era o tempo em que o amigo do noivo diminuiria, e Cristo apareceria cada vez mais.

Um dos amigos do noivo mais famosos e importantes da história de Israel, tem sua missão relatada em Gênesis 24. A forma como Eliezer conduziu Rebeca a Isaque tem muito a nos ensinar; cada pequeno detalhe aponta para uma missão que nós mesmos temos, ao passo em que nos colocamos como amigos de Jesus. Reconhecendo a Cristo como o noivo e a humanidade como sua amada pretendida, entendemos que ele nos confiou esta missão porque somos considerados por Ele servos de sua maior confiança e competência. E se olharmos para o modo como Eliezer se portou, notaremos que ele saiu da casa de Abraão com tudo de melhor que havia ali – ouro, prata,. Marfim, seda, alabastro – mas não confiando só na riqueza que carregava, pediu ajuda a Deus. A Bíblia diz que estando ainda em oração, Deus lhe respondeu enviando Rebeca cumprindo o sinal que Eliezer havia pedido. Portanto observemos que ao falar de Jesus para as pessoas, devemos mostrar o que de melhor conhecemos em sua casa. Levar para o mundo paz, alegria, fé, coragem, esperança, amor, todo esse rico tesouro que está à disposição para impressionar a noiva, e quando as pessoas disserem: “quanta coisa boa você transpira!”, que nós possamos arrematar: “você não viu nada: na casa do meu Senhor, que é a minha fonte, há muito mais! E Ele próprio é a maior riqueza, que nenhuma expressão humana é capaz de descrever”. Depois lembremos que trabalhamos para o Senhor e com o Senhor: a Sua ajuda é imprescindível a cada passo. Aprendamos também com a história de Eliezer, que esse amigo do noivo elaborou um rito pausado, sem pressa, sem fórmulas prontas ou palavras mágicas. Eliezer estudou com carinho o caminho para chegar ao coração de Rebeca, e uma vez tendo-o encontrado, foi tão feliz que ela não pensou duas vezes em deixar a família, a pátria e tudo o mais para ir ao encontro da felicidade. Assim como aconteceu com Rebeca e Isaque, há um final feliz garantido para o noivo Jesus e sua noiva, a humanidade. Basta usar o que há de melhor em nós para dizer isso às pessoas, e elas naturalmente se apaixonarão por Cristo, sem temor de deixar pra trás as coisas pequenas que as prendem a este mundo.

Mas ainda há uma história para retomar! Como terminou a historio do noivo cheio de expectativa que mencionei no primeiro parágrafo? Não terminou. Se a vontade e bênção divinas permitirem, não haverá fim para essa história. Necessário apenas dizer que dois dias depois eles foram jantar num restaurante japonês e lá ele descobriu duas coisas muito significativas: a primeira é que ela detestou sushi; a segunda, que eles ficam muito bem de aliança.

Uma semana iluminada!

Luciana Dantas Teixeira

domingo, 16 de novembro de 2003

Porque ele disse que vai ficar tudo bem

Lucas pôs em mim aqueles olhinhos ternos e segredou-me:

- Tô com medo...

Eu me inclinei para ele, segurei suas mãos pequeninas e disse que eu entendia que ele estivesse com medo, mas que ele agüentasse firme pois eu estava ali e não ia deixar ninguém lhe fazer mal. Ele sorriu e aconchegou-se junto a mim. Quando eu pensei que estava tudo bem ele tornou a me encarar:

- E você, tem medo?

- Eu tenho. Um monte deles: tenho medo de escuro, de lugares pequenos fechados, de lugares grandes cheios de gente, tenho medo de bonecas de porcelana...

-Ha ha!

- É! Quando eu era do seu tamanho – eu já fui do seu tamanzinho – eu achava que as bonecas de porcelana iriam me pegar quando eu dormisse e dar nós nos meus cabelos.

- Que medo bobo!

- Ah, quase todo medo é bobo para quem não sente aquele medo. Por exemplo, você gosta de galinhas, né? Eu tenho medo de galinhas. Minha irmã mais nova corria com a cabeça de uma galinha morta atrás de mim e eu quase fazia xixi de tanto medo. Mas você deve achar isso muito bobo! Tem outros medos que não são tão bobos. Como o seu agora. Fazer uma cirurgia não é um medo bobo, é mede de gente grande!

- É? Falou estufando o peito.

- É! Mas como eu te disse, estou aqui e não vou deixar que te façam nenhum mal.

- E você não está com medo?

- Hmm... é.... bem, Lucas, eu também estou.

- Então como sabe que não vão me fazer nenhum mal?

- É que seu pai está ali, está vendo? E ele me disse que te ama muito, e me ama muito, e não vai deixar que ninguém faça mal pra nós dois. Porque se fizerem mal pra você, estarão fazendo mal pra mim também.

- E o papai não está com medo?

-...

- Está?

- Está, Luquinhas.

- E como ele sabe que não vão fazer mal pra mim e para você?

- É que... Você viu quando o seu papai estava de olhos fechados? Ele estava orando para o Papai do Céu, dizendo a ele que tem muito medo de ver seu filhinho numa operação delicada, que não quer que nada dê errado com você, e Deus garantiu que vai ficar tudo bem, que ele não precisa ter medo, porque Deus ama muito o papai, você e eu, e não vai deixar que nada aconteça para o nosso mal, pois seria como se fizessem mal para Ele.

- E Deus...

- Não, Lucas, Deus não sente medo.

- Eu acho que Ele sente sim! Acho que Deus tem medo que a gente tenha medo.

- É mesmo, né?

- É “óbivo”! Se o papai ficar com medo, você também vai ficar com medo e eu também vou ficar com medo, daí eu não vou fazer a cirurgia e Deus não vai poder curar meu olhinho doente, né? E Ele tem medo de que a gente não deixe Ele me curar...

- (nó na garganta) – é...

- Mas... e quando Deus fica com medo quem é que diz para Ele que vai ficar tudo bem?

- Ora, é você, Luquinhas! E não acabou de dizer? Quando você acredita que não precisa mais sentir medo, porque tem muita gente que te ama protegendo e cuidando de você, aí Deus não fica mais com medo e pode fazer o trabalho dele sossegado porque Ele sabe que a gente acredita que vai ficar tudo bem, então não vamos atrapalhá-lO. Vou contar um segredo. Eu e o papai não queremos que você se machuque, não queremos que nada de mal lhe aconteça, mas só temos uma vaga idéia do que é realmente bom ou ruim para você. O papai por exemplo não gosta da idéia do médico cortar seu olhinho, mas o médico vai fazer isso apenas para te fazer um bem maior, e você ficar curado. Se o papai pudesse não te largaria nunca, porque ele acha que bom pra você é você ficar sempre perto dele, ele acha que sabe tudo sobre te proteger. E eu então? Você acha que uma pessoa que tem medo de galinha sabe o que é bom para Luquinhas? Mas a gente não sabe, só pode acreditar para deixar Deus fazer o trabalho dEle em você. Se Ele te trouxe até aqui para você ter o que precisa para ser feliz, eu e o papai vamos ter que deixar você ir e sem medo, pra que dÊ tudo certo como a gente quer.

Os médicos vieram, e começaram a levar Lucas para fora da sala numa maca. Seu pai ainda o segurou um instante (como assusta o desconhecido!), mas Lucas sorriu para o pai e disse:

- Papai, deixa eu ir! Pode acreditar em Deus que já falei para Ele que vai ficar tudo bem...

Uma semana iluminada, amigos!

Luciana Dantas Teixeira

ps.: Dedico este texto a Anderson. Meu amado amigo, siga tranqüilo. Nada de mal vai acontecer com você. E a essa altura você já sabe porquê...

terça-feira, 11 de novembro de 2003

Tratamento natural

Meu frágil limiar para a dor me fez ser, durante muito tempo, uma entusiasta assumida da praticidade alopática. Qualquer dor, febre, cólica ou machucado, eu corria para um remédio rápido, local, eficiente e se possível sem gosto ruim nem ardência. “Ora”, eu raciocinava, “se Deus nos permitiu ter a ciência de ir direto ao ponto com uma aspirina, nada como agradecer-Lhe fazendo uso da dádiva.” E que parto humanizado que nada! Desde que, aos doze anos, eu compreendi exatamente como os bebês vinham ao mundo, decidi: “quero um parto com drogas, muitas drogas, dopping absoluto”.

Mas tive a chance de convier algum tempo com um casal muito amável que me fez ver o processo doença/cura por outra ótica. Enquanto as estadas na casa deles se resumiam a degustar deliciosas refeições vegetarianas, estava tudo às mil maravilhas. Até um dia em que, logo após o almoço, me atacou uma das minhas insuportáveis enxaquecas. “Como assim não tem aspirina?”, eu perguntei incrédula à senhora sorridente. E ela me explicou mais uma vez que não tinha, que eles não faziam uso de nenhum tipo de tratamento alopático, não gastavam um só centavo na farmácia. Na minha bolsa, dezenas de cartelas vazias de anador aumentavam meu desespero. Ela, percebendo-o, recomendou que eu tomasse um banho frio, depois fizesse um escalda-pés, e por fim me faria uma massagem nas têmporas. Fiquei ainda uns minutos olhando boquiaberta para aquela gente que, em pleno século XXI, não possuía uma aspirinazinha salvadora em casa. Como eles conseguiam sobreviver? “E quando está no trabalho, oq eu a senhora faz? Pede licença pra ir em casa tomar banho e fazer escalda-pés?”. Ela respondeu, mais sorridente, que eles não tinha dor de cabeça. “Ah, tá”, eu murmurei ainda boquiaberta, me dirigindo para o banho.
Já com os pés numa bacia de água quente, ela massageando minhas têmporas, me ocorreu uma vaga lembrança que foi ficando mais e mais viva na medida em que eu me concentrava nela. Lembrei que quando eu tinha por volta de sete anos, já tinha crises fortíssimas de enxaqueca que não diminuíam com nenhum tipo de analgésico. Eram tão violentas que eu gritava, chorava desesperada e por fim quedava-me semiconsciente. Mas havia um tratamento infalível: era quando minha mãe ou meu pai deitava minha cabeça em seu colo, colocava as mãos em minha testa, e enquanto oravam ou cantavam alguma prece, acariciavam-na ternamente. Então eu dormia tranqüila, e ao acordar já não sentia nada.

Como quando ela parou de massagear minhas têmporas. Eu estava bem. E refletindo sobre o episódio apreendi algumas coisas do tratamento natural, que listo abaixo sem intenção terapêutica, mas – acredite – com um interessante fundo teológico:

1 – Somos todo, devemos ser tratados como todo – “De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele.”(I Cor 12:26). A alopatia é objetiva, vai direto ao ponto se concentra lá, crendo que tratando o mal no local em que ele se manifesta, resolverá o problema. O tratamento natural considera o universo. Não vê uma cabeça com vasos dilatados e doendo, mas uma criança que chora com dor, medo e desespero. Vai tratar da segunda. Acalmá-la, acariciá-la, falar ao seu corpo e espírito por entendê-la completa. Não somos pedacinhos. Desde o mito das almas gêmeas de Aristófanes, muitos insistem em acreditar que são metade, parte quebrada que dói. Mas somos como Deus nos vê: um todo (embora nem sempre bem concatenado). Por isso Ele não acabou com o mal pontualmente quando esse se manifestou. Bastaria uma palavra e o lugar onde o mal primeiro apareceu seria fulminado. Mas isso traria efeitos colaterais profundos para a história da humanidade atingida pela chaga, e o homem jamais teria certeza da justiça de Deus, tal como, no início, não tinha certeza da natureza do mal. Por isso Ele foi além para resolver o problema no todo, na humanidade, mesmo que essa nem sempre O entenda e às vezes O culpe pelo mal que Ele está derrotando (só os olhos da fé podem ver vitória iminente entre tantas feridas). Enquanto isso, no todo de cada homem, nas histórias que formam a História, Deus vai prescrevendo a cura, manifestando Seu amor de forma ao mesmo tempo pessoal e universal.

2 – Os semelhantes foram feitos para os semelhantes – o lema da homeopatia, um dos tratamentos naturais mais difundidos, é “os semelhantes são curados pelos semelhantes”. A alopatia introduz elementos contrários ao mal, com o fim de forçar o órgão a encontrar sua solução. O tratamento natural emprega elementos comuns ao meio em que o homem vive para envolvê-lo a partir daquilo que seu organismo conhece, mas sente falta. Tal como Deus que, para resolver o problema da humanidade, desceu até ela com tudo em comum. “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si” (Isaías 53:4). Resolver as coisas lá de cima, objetivamente, como Deus, seria fácil, rápido mas impessoal. Então ele veio aqui, assemelhar-se. E, inocente, sofrer num corpo frágil as dores e tentações da humanidade inteira... foi difícil. Mas necessário, tanto quanto a cura para nós.

3 – Os semelhantes se unem - Um médico alopata, quando vai tratar do doente de estômago, olha o estômago. Examina o órgão por dentro, por fora, dos lados e dá seu parecer. Médico e paciente continuam a uma distância segura. No tratamento natural, o olhar examina inteiro e comedido, sem pressa e com curiosidade. Há contato (nosso século tem medo disso!) para que haja unidade, e na justa inteireza, a cura. As mãos espalham o ungüento, tocam a pele, os pés tocam a água, os sentidos tocam cheiros, gostos verdadeiros, até o som da voz materna, de uma oração ou música (como eu que hoje administro Mozart para minhas enxaquecas). Os semelhantes se abraçam, sem medo. Tocam-se; no toque se reconhecem. E ao se conhecerem de novo se unem. Tal como eu, que depois de conhecer o amor de Cristo revelado em Seu sacrifício e na intercessão cotidiana do seu sangue purificador, não posso seguir em outra direção que não seja Seus braços, Seu olhar, Sua resposta às minhas dores.

Não pretendo defender a superioridade absoluta do tratamento natural sobre o alopático. Nem que eu tivesse condições técnicas para isso, poderia deixar de admitir que esse último também é importante para solucionar nossos males. Mas ainda que tenha de amadurecer a idéia do parto humanizado, sigo divagando uma vez mais, que este meu frágil limiar para a dor me conduz incontinenti a pensar sobre como Deus revela de tantas formas Seus mistérios de salvação.

Uma semana iluminada,
Luciana Dantas Teixeira

segunda-feira, 3 de novembro de 2003

Uma dor

Ontem, quando entrei no ônibus de Recife para Natal, imaginava que aquela seria apenas mais uma viagem cansativa e melancólica de mais de quatro horas para longe de alguém que amo. Comprei a última passagem que sobrara, bem no fim do corredor direito, e a encontrei ao lado de um homem simpático que se ofereceu para guardar minha bolsa no compartimento de cima. Agradeci, e como sempre faço a fim de evitar a possibilidade da viagem ser ainda pior, abri logo um livro e fiz cara de leitora compenetrada para não dar margem à grandes diálogos. Chatice minha, provavelmente, mas conversar em ônibus me dá enjôo, especialmente considerando o tipo de conversa que quase sempre se inicia. Mas se tenho percebido algo nas minha ponte rodoviária Natal-Recife, é que os ônibus deixam as pessoas mais sensíveis e abertas. O fato de ter ao lado um interlocutor que possivelmente não se verá nunca mais desarma as travas da língua. E assim, depois que a luz apagou e eu acordei sobressaltada de um pequeno cochilo, o homem ao lado perguntou sobre as partituras que eu estava lendo e começamos a conversar.

Ao contrário do que eu imaginava, a conversa fluiu agradavelmente. Falamos de música, índios, aviões (ele é piloto da aeronáutica), peixes, e lá pelas tantas tentávamos identificar constelações pela janela do ônibus. Foi quando falei de Deus (na se pode olhar as estrelas sem pensar nEle). E Romeno mudou a entonação da voz. Falou que há algum tempo ele era um religioso dedicado, um cristão convicto, que não perdia um reunião na igreja, onde ia com sua esposa e duas filhas. Mas um dia, tendo saído da igreja com sua família em direção a casa, um caminhão desgovernado chocou-se contra seu carro, esmagando todo o lado esquerdo de sua mulher, passando por cima de sua filha mais nova e arrancando as duas pernas de sua filha mais velha.

- Se eu não tivesse ido à igreja naquela noite, isso não teria acontecido.

E Romeno começou a chorar. Poucas lágrimas já me afligiram tanto quanto as daquele homem, um militar treinado para ser forte e resistir a situações limite, mas que não resistia à própria dor, que carregava há doze anos com uma mágoa profunda. Seu semblante e conversa denunciavam um homem bom, honesto, sensível. Mas a ferida sangrava lá dentro, e agora ele não fazia força para esconder. Em meio às lágrimas ele me falou que sua filha, Catarine, foi o único bem que lhe sobrou. E para tentar fazê-lo parar de chorar, eu pedi que ele me dissesse como ela é, o que gosta de fazer. Enquanto ele a descrevia, sua face ficou mais alegre: ela vai fazer o vestibular próxima ano, adora estudar o céu e as estrelas, sabe o nome de cada constelação, é uma menina organizada, batalhadora, gosta muito de animais (a ponto de criar carinhosamente três gambás), e apesar dele não dizer expressamente, ficou patente que é uma garota feliz.

Mas ainda restava Romeno, ali, com aquele buraco no peito, e eu sem saber como estancar. E eu poderia? O que dizer a um homem que perdeu seu ideal de felicidade de uma forma tão violenta? Como responder às mesmas velhas dúvidas, cujas respostas eu mesma nunca encontrei, tais como: “o que fiz de errado para receber esse castigo?”, “por que Ele não impediu que isso acontecesse?”, “elas ainda estariam vivas se eu não fosse um cristão?”. Por alguns minutos calamo-nos. Romeno olhava as luzes de Natal se aproximando e eu orava pedindo que Deus falasse algo para ele através de mim. E pouco antes de ver Romeno partir eu lhe disse que precisava dizer-lhe algo:

- Não culpe sua fé pelo que aconteceu. Sua fé garantiu a salvação de sua pequena filha, e fez a sua esposa, orgulhosa, levar de você a imagem do marido que ela sempre quis ter. Deus não está indiferente à tua dor, Ele, que também viu morrer o Filho sem poder fazer nada, sabe exatamente como você se sente. A dor dEle teve uma finalidade, que você sabe, é a causa de toda a humanidade poder ter vida. A sua dor, Romeno, também tem. Um dia você vai saber, mas até lá considere que perder esposa e filha já é demais para um homem; não perca também sua fé. Ainda é preciso ter fé para garantir que você e sua filha Catarine cumpram o plano que Deus preparou para vocês aqui, e um dia, possam saber as respostas das suas perguntas. Deus ama você. Muito. E independentemente da sua dor, o amor dEle vai te continuar lhe acompanhando.

O ônibus parou. Romeno pediu licença, pegou sua bolsa, apertou minha mão e disse que foi um prazer conversar comigo.

- Sei que foi Deus quem te mandou aqui. Você é um anjo dEle. Pois então mande-lhe um recado: diga que valeu a tentativa.

Anjo, Romeno? Não... sou muito menor. Não posso sequer suportar a dúvida de que, talvez, não tenha te falado o suficiente, não tenha te dito as palavras certas. Como sou impotente, meu amigo viajante. Não consegui, antes que você saísse, nem mesmo lhe dizer que, se Ele tentou, é porque você é muito importante para Ele.

Uma semana mais iluminada,

Luciana Dantas Teixeira.