domingo, 24 de novembro de 2002

Mefibosete

Ele é um daqueles personagens sem muitas glórias para contar, que ficam escondidos nas histórias bíblicas. A forma mesmo como aparece pela primeira vez é trágica: aos cinco anos, Mefibosete sofre um acidente que lhe deixa deficiente das pernas para o resto da vida. (II Samuel 4: 4). Mas nenhuma história está registrada na Bíblia por acaso, e apesar de obscura , a vida desse homem tem algo a nos contar.

Com a morte de Saul, toda a sua descendência andava temerosa. Embora sabendo que Davi era um homem justo e temente a Deus, não faltavam pessoas – aqueles bajuladores de plantão – dispostos a acabar com a descendência de Saul para mostrar-se do lado do rei, tanto que Isboete, um dos filhos de Saul, foi morto justamente por essa causa (II Samuel 4:8). A sensação para a família de Saul é que muitas cabeças iriam rolar, literalmente...

Mas ao invés de aproveitar a oportunidade para vingar-se da família cujo patriarca passara a vida inteira lutando contra si, Davi permanecia fiel a promessa que fizera a Jônatas, filho de Saul, de que jamais levantaria a mão contra um descendente seu. Por isso, depois de vitorioso, no auge de seu poderio, Davi ainda lembrava-se da aliança que fizera com seu amigo, e certo dia inquietou-se: “Resta ainda, porventura, alguém da casa de Saul, para que eu use de bondade para com ele, por amor de Jônatas?” (II Samuel 9: 1).

Havia. E que era? Mefibosete! O curioso é observar que, originalmente, ele se chamava Meribe Baal (I Crônicas 9: 40), que significa “combatente contra Baal”. Ele nascera para ser um herói corajoso! Mas agora se transformara apenas em Mefibosete, que significa “propagador da vergonha”. A queda de seu avô Saul o arrastou para a miséria, a ponto dele considerar-se a si mesmo com um cão morto (II Samuel 9: 8). Então eu penso em quantos filhos que nosso Deus destinou para a luta, para a batalha pelo bem, para a vitória sobre os males deste mundo. Mas estes filhos acabaram sendo arrastados pela miséria de outros, caindo tanto ao ponto de serem apontados como “propagadores da vergonha”. O apóstolo Paulo adverte: “Aquele que pensa estar em pé, cuide para que não caia” (I Cor. 10: 12). Veremos muitas pessoas caindo ao nosso redor durante a caminhada cristã. Algumas dessas quedas terão tal impacto sobre nós, que, ao olhar ao redor, nosso primeiro impulso será desistir também. Mas o fato de algumas pessoas abandonarem a verdade, não significa que a Verdade desvaneceu, nem temos que cair também, traindo o destino para o qual Deus nos reservou: o de combatentes caminhando para a vitória certa.

E quando alguém cai, onde pode ser encontrado? Certamente não perto da glória. “Onde está?”, Davi perguntou. E seu servo foi achar Mefibosete num lugar chamado Lo-Debar, que significa “sem pastagem”, “que não é nada”, “é sem valor”. “Onde estás?”, perguntou Deus a Adão logo após sua queda. E foi achá-lo escondido e com medo por entre as árvores. “Onde estás?”, pergunta Jesus ainda hoje quando nos afastamos de Seu convívio. E a resposta nunca aponta para um lugar melhor do que aquele onde estávamos junto dEle. Longe da companhia gloriosa de Cristo, podemos até encontrar refúgio, mas não em algo que tenha real valor.

Imagino a cara de Mefibosete quando foi procurado pelos servos de Davi. Ele deve ter ficado mortalmente assustado. O que o Rei poderia querer com ele, descendente de um homem que o combatera a vida inteira? Mas ao encontrar-se com Mefibosete, Davi disse aquilo que Deus sempre diz quando quer ganhar a confiança de um pecador: “Não temas!” (II Samuel 9: 7). Embora naquele momento Mefibosete representasse a própria miséria, Davi usou de bondade e misericórdia para com ele, por que é justamente a fraqueza que atrai a graça. Aquele homem, deficiente, representante da derrota e da estultícia de seu avô Saul, foi recebido com amor, reconduzido a uma vida digna e passou a se alimentar na mesa do Rei. Bem, você pode imaginar que para o padrão da época e mesmo de hoje, Mefibosete não fosse considerado pelas pessoas exatamente um enfeite para mesa real. Mas Davi o amava, porque via nele traços de seu amigo Jônatas.

Qualquer semelhança com a graça de Deus não é mera coincidência. É quando reconhecemos nossa fraqueza e feiúra espiritual, que Deus é atraído para transformar-nos, e “nos faz assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus, para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco...” (Efésios 2: 6 –7). É quando não temos nada para barganhar com ele, quando percebemos que todas as nossas boas obras e lista de regras bem cumpridas não são suficientes para encobrir nossa condição miserável, que podemos entender a Sua maravilhosa graça: não temos nada em nós que nos justifique, mas Ele vê em nosso ser traços de seu filho Jesus Cristo, e pela aliança firmada na cruz, nos ama infinitamente.

A história de Mefibosete poderia ter terminado por aí, mas infelizmente vamos encontrá-lo novamente em II Samuel 16: 1 – 4, em maus lençóis. Ziba, seu servo, além de lhe roubar os alimentos, ainda o acusou de querer tomar o reino de Davi. Este por sua vez, que estava no meio de uma fuga de Absalão, e sem muita condição de averiguar a veracidade da informação, deu a Ziba tudo que pertencia a Mefibosete. Se ele não fosse coxo, poderia ter acompanhado o Rei, e Ziba não teria passado-lhe a perna e roubado todos os seus bens. Nesse ponto eu pensei comigo: “coitado do Mefibosete!”, mas ainda aí há uma lição para aprendermos.

Espiritualmente, não podemos passar a vida inteira na mesma condição com que fomos achados. Deus nos recebe como somos, com todos os nossos defeitos, mas se não formos transformados, se não desenvolvermos nossas próprias pernas para acompanhar o Rei onde quer que Ele vá, chegará um momento em que poderemos perder tudo aquilo que nos foi dado. E nossas deficiências espirituais só são sanadas por meio de uma busca constante pela santificação, ou seja, por pôr em prática em nossas vidas o amor que aprendemos dEle. Há a tentação de se acostumar às mordomias da mesa do Rei, e acomodar-se em usar muletas para se movimentar. A religiosidade ritual pode ser uma muleta. A vida social que a igreja proporciona, as pequenas satisfações de cantar, pregar, evangelizar, tudo isso é uma bênção se não for usado como mera muleta para estar no palácio do Rei. O motivo de estarmos com Ele deve ser primeiramente Ele mesmo. Tudo o mais, ainda que importante, não deve ser o determinante em nossa vida cristã. Chegará o momento em que tudo que fazemos na igreja, todos os nossos pequenos rituais, obras, cargos e títulos não serão o bastante para nos permitir andar junto ao Rei. E é nesse momento que corremos o perigo de perdermos toda a herança que nos foi dada...

Que nesta semana possamos meditar uma vez mais sobre a graça de Deus em nossa vida, e deixar que ela nos transforme, para que possamos ser vigorosos combatentes de Baal, não simplesmente acomodados a vida exterior de convivas do Rei, mas vivendo interior e plenamente a condição de Príncipes do Reino Celestial.

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 17 de novembro de 2002

Milagrinhos

Pequenos milagres é que me fascinam. Os grandes são fáceis de ver, e já existe gente demais falando deles. Do outro lado existem pessoas que, sem poder contestá-los, convivem confortável e alheiamente com o fato de que Deus existe. Pequenos milagres exigem um olhar mais atento, e quando percebidos fazem exclamar "Deus existe mesmo, e na minha vida!". Pequenos milagres convertem. Falemos de coisas pequenas então.

Por duas semanas eu me preparei para apresentar um seminário sobre Processo Penal. Queria fazer meu melhor e para isso não poupei esforços: sacrifiquei horas de sono, lazer, deixei de estudar para outras provas priorizando esse seminário. Na noite anterior à apresentação, depois dos indefectíveis ensaios diante do espelho, olhei os rascunhos e anotações satisfeita e fui dormir. Mas por um desses mistérios insondáveis do universo, o despertador não tocou pela manhã, e eu acordei na hora exata: na hora exata em que deveria estar começando o seminário... Desesperada, pensei em todas as possibilidades de chegar até à faculdade com apenas quinze minutos de atraso, mas a única coisa que me ocorreu foi um helicóptero, e não havia nenhum por perto, então, tal qual o salmista às margens dos rios da Babilônia, eu sentei e chorei.

Estava tudo irrecorrivelmente perdido. Restaram apenas as imprecações contra meu despertador, meu sono de pedra, e é claro, umas reclamações contra Deus, que bem poderia ter me dado uma forcinha e, levando em conta meu esforço, ter dado um jeito de me acordar a tempo. Por que não? Ele não é capaz de coisa bem maiores? E não se preocupa com pardais? Por que não poderia dar uma olhadinha pra mim quando preciso? Então me entristeci conformada, pensando que Ele devia ter mesmo coisa mais importante para fazer, que detalhes da minha vida dizem respeito somente a mim, Deus não poderia se ocupar de coisinhas do meu dia-a-dia, Ele não pode ligar para as pequenas preocupações que cada filho encrencado resolve lhe jogar nas costas. "Sei lá, deve estar resolvendo alguma questão na Palestina", pensei, e liguei para um colega a fim de avisar que eu não poderia ir. Ele disse:

- Ah, tudo bem,.o professor não veio.

- An??????

- É, como ele nunca se atrasa, e já são sete horas e dez minutos, pode ter certeza que ele não vem mais.

É, ele não foi. Não tenho idéia do que o fez faltar, especialmente porque isso não é comum. Só sei que no momento que desliguei o telefone me senti a própria Scarlet Ohara em "O vento Levou", cabelos desgrenhados ao vento, maquiagem borrada, dizendo: "Jamais sentirei falta de fé outra vez!!!"

Bem, eu poderia fazer apenas o normal e exclamar: "Ufa! Que sorte!". Poderia apenas ficar com essa "feliz coincidência" e seguir meu caminho. Mas sinceramente, o que ouvi foi um Deus amoroso dizendo: "Ei, você sabe que me preocupo com as aves do céu e com os lírios do campo, mas também me preocupo com você, e no momento o que você estava precisando mesmo não era de um despertador, era dormir!!". Reconheço que minha vida é uma sucessão de pequenas e felizes coincidências, algumas das quais eu nem sei que aconteceram, outras cotidianas, mais ou menos vistosas, mas sinto que muito do que acontece em minha vida não é fruto apenas do que eu faço ou deixo de fazer. E eu teria que fazer um esforço muito grande para crer que isso são só coincidências, quando o mais evidente é que Ele cuida de mim. Sim, mesmo nos mínimos detalhes.

Mas é sempre a mesma coisa: não vemos os pequenos milagres e esquecemos os grandes. Por que não admitimos que Deus pode interferir em pequenos episódios de nossa vida e mudar decisivamente a direção ou fim de um episódio, em nosso favor? Por que preferimos chamar isso de sorte, coincidência ou intuição? Certamente admitir uma intervenção divina exigiria de nós uma resposta, nem que fosse gratidão, e não queremos sentir que "devemos algo" para alguém, especialmente quando esse alguém é Deus (fomos ensinados que não se dá nada sem se cobrar algo em troca, e sabe-se lá o que Deus pode cobrar de nós!). Ver pequenos milagres, consiste em admitir que Deus existe e está presente em nossas vidas. Até onde essa presença nos incomoda, desnuda ou constrange? Crer em pequenos milagres é bem mais difícil que crer em grandes milagres. Grandes milagres geralmente são com os outros, pequenos milagres vão insistir em me dizer respeito! Pode-se lidar razoavelmente com o fato que Deus tem o mundo nas mãos, mas quão perturbador é perceber que Ele tem justamente a minha vida nas mãos dEle! E tudo bem que se importe com a Palestina, mas como encarar tranqüilamente o fato de que Ele se importa comigo e meus menores anseios, problemas e dificuldades? E se Ele resolver me cobrar caro pelo excesso de zelo? Se quiser que eu seja mais grato que eu gostaria de ser? Se descobrir que prestando tanta atenção em mim Ele não vai ter lá um retorno tão grande em termos de investimento?

Ora, Deus quer mais é saber de amar você. E enquanto você estuda sua reação e conseqüências diante dEsse amor incompreensível, Ele vai mostrando do que é capaz um ser humano.

Venha aqui para o evangelho de João 20: 11. Lá está Maria chorando e chorando, totalmente concentrada em sua dor. "Ai, roubaram o corpo de Jesus, era só o que faltava. Não podiam tê-lo poupado de mais esse sacrilégio? Ai, se eu soubesse onde está o corpo dele...". Então Jesus aparece para ela. Sabe o que imagino? Jesus havia acabado de ressuscitar. Ele agora subiria aos céus, que em festa, cheio de júbilo e ansiedade o esperavam para honrá-lo como o Príncipe da Vida e saudá-lo vivamente, dando a afirmação de que seu sacrifício expiatório fora aceito. Jesus só tinha que subir e correr para o abraço, literalmente. O Seu próprio Pai O esperava cheio de vontade de abraçá-lo, de tê-lo de novo consigo depois de um tempo tão doloroso de afastamento. Jesus, por sua vez, estava prestes a se desprender da miséria humana e adentrar de novo no seu Lar original, cheio de glória, luz, lugar perfeito de onde ele estava cheio de saudades. Lá ia Jesus... mas ouviu Maria chorar. E deu meia volta. Foi até ela, e com todo o carinho deste e do outro mundo, dissipou-lhe a tristeza anunciando que havia ressuscitado e estava indo ver Seu Pai, deu-lhe o mais animador de seus sorrisos, e só depois de deixar Maria feliz foi que Ele continuou seu caminho rumo a um Céu glorioso... mas que podia esperar. (ver "O Desejado de Todas as Nações" de Ellen G. White, págs. 788 a 791)

Percebe? Jesus não resiste a uma lágrima humana. E uma só lágrima de sofrimento de um único filho seu é capaz de fazer Ele deixar um céu inteiro esperando, só para devolver o sorriso àquele filhinho. É esse Deus de amor que eu conheço e vejo agir em minha vida. Nenhum detalhe do meu viver é demasiado pequeno para que Ele não se importe, ou não haja quanto a isso em meu favor. Por isso me fascinam os pequenos milagres, e perante as coisinhas menores da minha vida é que sempre peço com mais ardor: "Pai converte os meus olhos para que te vejam, converte a minha memória para que ela jamais esqueça que Tu és Deus."

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 10 de novembro de 2002

Então tá

(O diálogo a seguir não é ficção. Aconteceu sexta-feira, por volta das dezesseis horas tendo por cenário um ônibus lotado. Por partir de crenças muito pessoais a respeito do conceito de Deus, não o recomendo para quem ora apenas de joelhos e só se dirige a Ele na segunda pessoa do singular.)

- Então tá, é o seguinte: eu preciso cuidar da minha vida.

- Tá.

- Tá? Assim, você não vai me contestar?

- O que eu posso dizer? Se você decidiu assim, eu só posso aceitar e continuar do teu lado. Não acho que qualquer coisa que eu fale agora vá fazer você mudar de idéia.

- Talvez! Por isso vim aqui falar com você.

- Quando você me chamou achei que tinha algo a me dizer, apenas. Não consegui perceber uma intenção de diálogo.

- É, é verdade, mas eu deixo você falar. O que me dá raiva é que no fim você sempre tem razão.

- ...

- E sempre faz minhas razões parecerem tão ridiculamente pequenas, que eu acabo voltando atrás e fazendo a sua vontade.

- E isso é ruim?

- Não, não é que seja ruim, mas no final de tudo fica parecendo que eu sou a única pessoa do mundo que ainda se importa com isso. Entende? Me sinto anacrônica, deslocada, um ET que nunca vai aprender a viver aqui.

- Você pode tentar aprender a viver aqui, na verdade eu até espero que você consiga. Mas meus planos pra você vão além disso. E se você quiser ir além deste mundo, não vai conseguir se adaptar aqui mesmo.

- Tá vendo? Então eu vou passar o resto da minha vida me colocando em segundo plano? Eu ainda vivo aqui, tenho que pensar no que está acontecendo agora, ao meu redor. Foi isso que eu vim te dizer, acho que você cuida bem de mim, mas eu também preciso fazer isso de vez em quando. Acho que eu posso me virar sozinha às vezes. Não acho que se eu deixar de fazer certas ações, isso vai alterar a ordem das coisas, no final tudo vai ficar bem. Sabe, acho que não sou insubstituível. Por que eu tenho que fazer certas coisas? Você não pode colocar alguém pra fazê-las em meu lugar?

- Posso.

- E então, tou liberada?

- Do quê?

- Ora, de fazer as coisas tão certinhas! De ser tão boazinha e levar sempre a pior!

- Mas você faz assim porque quer! Porque você é assim. Porque quer fazer o que eu quero pra você, você mesma decidiu isso, não foi? Como você pode se liberar de você mesma?

- Ai, ai, lá vem você dando um nó na minha cabeça de novo. Ta vendo, é impossível ter um diálogo com você...

- ...Sem que você consiga driblar o que você de fato é. Mas é um fato, você não pode correr tão rápido que consiga escapar de você. Pode fingir não me ouvir, pode arquitetar suas desculpas (e você é boa nisso!), mas quando tiver certeza que está "livre" para fazer tudo o que quer, me responda, será que você estará finalmente feliz? Você acha mesmo que o que você não encontrou aqui dentro, poderia encontrar lá fora? Acha que construindo um mundo só seu, você se sentirá segura enfim? Bem, você sempre esteve "liberada" para fazer o que quiser. Eu vou continuar te amando e esperando. E aposto três estrelas como minha fidelidade dura mais que sua satisfação lá fora. Hmm... diga apenas, para onde você iria?

- Ah, não sei, o mundo é tão grande... que dá até medo. E se eu deixar de amar você? Você sabe, a gente pode cortar a convivência, então com o tempo eu vou deixando de te amar.

- Pode ser, com certeza. Mas mesmo sem me amar, você ainda vai se lembrar que os melhores momentos de sua vida foram passados do meu lado. E eu vou continuar te amando, já disse, e esperando você voltar pra gente conseguir viver uma vida toda de felicidade juntos e não só alguns momentos.

- Olha, bonita sua conversa, mas na prática a gente sabe que não é assim. Não dá pra ser feliz com tanta gente fazendo as coisas erradas, que ainda dizem estar do teu lado. Não dá pra ter uma vida inteira de felicidade tendo tanta gente ao redor destruindo o que você lutou pra erguer, arrancando o que você plantou, semeando mentira onde você se esforçou pra fazer brotar a verdade. Ninguém pode ser feliz tão plenamente, vendo pessoas sendo enganadas, maltratadas, negligenciadas física, social, emocional e espiritualmente, por outras pessoas que só se importam em manter uma fachada de "bom cristão". Como conciliar felicidade e hipocrisia?

- Eu falei de felicidade, não de perfeição. A perfeição não é pra agora, menina impaciente...

- Num me xinga não!

- Não estou xingando. Nem mentindo, certo?

- Só porque você me conhece não precisa ir apontando os defeitos, ora...

- Falei de felicidade, porque me referia a estarmos juntos. A maioria do tempo as coisas não vão mesmo estar bem. Alguns dos seus planos vão dar errado, outros vão ser destruídos a despeito de todo o seu esforço pra fazer o que é certo. Eu gostaria muito que não fosse assim, mas só posso agir quando chegar o tempo certo, e até lá preciso de sua confiança. Nós podemos ter uma vida inteira de felicidade, sim! Todos os momentos felizes que tivemos juntos não foram por causa da alegria contida neles. Fomos felizes mesmo em alguns dos seus momentos mais difíceis, só porque estávamos juntos. E quando te prometo uma felicidade perene, não estou falando que tudo vai ser sempre flores, mas que podemos estar sempre juntos sempre, ininterruptamente.

- Mas tem tanta coisa errada...

- Bem-vinda ao planeta Terra! Não adianta fingir que não é com você. Tem um monte de pessoas olhando pra você e esperando o que você vai fazer.

- Isso é assustador... Quer dizer, sou tão... tão...nada!

- Eis o ponto de tensão: o que você é, e o que você pode ser. Como as coisas estão e como elas poderiam ser.

- E se eu não conseguir? Se eu cair fora ou simplesmente cair derrotada no chão?

- Bem-vinda à resistência. Eu posso te garantir paz enquanto você lutar.

- Que paradoxo!

- De fato, mas é assim. Não posso te dar muitas respostas agora, porque você não está preparada pra entendê-las. Também não posso prometer que você vai sempre ganhar e ver as coisas dando certo. Mas posso prometer - e já prometi - paz. A minha graça te basta.

- Ô frase difícil e engolir! Pode ser que não baste, já parou pra pensar nisso?

- Ah, já sim. Mas eu não afirmaria com tanta certeza se não soubesse: minha graça te basta.

- Ta. Então digamos que eu te confesse que certas verdades que eu vivia e pregava com tanto fervor há uns anos atrás, já não têm a mesma força sobre mim. E aí?

- E aí que essas verdades não deixarão de ser verdades só porque você não as vive mais. E nem tente fazer sua versão para elas, porque você sabe que essas verdades são absolutas. As únicas coisas absolutas no universo. Embora haja tanta gente empenhada em negar isso para tentar se autojustificar. Você quer ser mais uma?

- Eu não. Mas a gente cansa, sabe? Não, por favor não me fale de exemplos bíblicos, de personagens bravos e fortes que não são eu. Não me cite os velhos versículos como aquele "mas os que esperam no Senhor renovarão as suas forças..."

- Tu o disseste! Eles são velhos mas ainda são pra você...

- E se eu cansar de ver que ninguém mesmo liga pra certos valores?

- Eles continuarão sendo os valores certos. E você saberá disso enquanto viver.

- E quanto tudo parecer irreal? Quando minhas crenças parecerem, aos olhos de todo mundo, algo sem nexo? Vou ter que passar o resto da vida estudando teologia, apologia, argumentação, e me matando com as refutações da alta crítica?

- Se você acreditar, já será real. E todos verão isso.

- Voltamos à fé...

- É... a fé, que você ainda tem aí dentro, e por menor que possa parecer, é sempre suficiente para criar raízes e dar frutos. O grão de mostarda, lembra? Eu acredito na qualidade da sua fé. Se ela não fosse das boas, você não estaria falando comigo no meio desse ônibus lotado.

- Tem razão, desculpa de tê-lo feito vir aqui, é que era urgente...

- Tudo bem, estou mais confortável que você.

- Então tá, é o seguinte, acho que você ganhou outra vez.

- É? Então exijo um pôr-do-sol ao seu lado.

- Mas não saia de perto de mim nunquinha, tá certo?

- Nem você, combinado?

- Combinado, prepare aí seu melhor pôr-do-sol e vamos ver se depois de milênios você ainda não enferrujou.

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 3 de novembro de 2002

A maior tragédia

Outro dia, eu e umas amigas conversávamos sobre as manias curiosas que as crianças têm. Eu contei, achando-me o mais esquisito dos seres, que quando era criança e minha mãe me batia, eu ia para o meu quarto, ligava o rádio numa música romântica, bem triste, e só então chorava com gosto minha mágoa, que acentuada pela melodia ganhava ares de tragédia. Outra amiga contou que, bem pequena, quando estava chateada ou sentia alguma dor, puxava bastante os próprios cabelos pra dor aumentar e ela chorar com mais força ainda. Mas quem ganhou mesmo foi outra amiga, que relatou, vitoriosa, que quando levava umas boas palmadas da mãe, ia para frente do fogão na cozinha, e ficava olhando fixamente no vidro do forno, o rosto coberto de lágrimas, e então chorava mais, como se estivesse vendo a sua própria dor sendo encenada na televisão.

Não importa o que dizem as estatísticas da ONU: nós sempre vamos achar que nossas próprias tragédias merecem toda atenção. É da natureza humana encontrar sempre algo para queixar-se, e por menor que o problema eleito pareça aos olhos dos demais, ele costuma ser tratado com tamanha ênfase que ganha ares de insolubilidade. "Ai, minha unha quebrou, que desgraça!", e acredite, o sofrimento é verdadeiro e plenamente justificável: "Você tem idéia de quanto tempo esperei esta unha crescer? De quanto gastei em esmalte fortalecedor? Do envolvimento emotivo e cósmico que eu tinha com essa unha?"

Brincadeiras à parte, todos nós, pelo menos uma vez na vida, nos vimos às voltas com algum grande problema, aparentemente sem solução. Daqueles frente aos quais nos sentimos completamente impotentes. Ou ainda daqueles que desabam depois de você ter dedicado um tempo e esforço enorme investindo para que algo fosse adiante, e no fim alguém - que não está realmente interessado na sua dedicação - põe todos os seus planos a perder. Seja qual for a descrição do grande problema, ele é será sempre trágico aos olhos de quem o viveu (mesmo aos olhos daqueles que disfarçam muito bem).

Esta semana, mais uma vez, Deus me falou que no perfil de um cristão não se encaixa bem essa tendência humana de supervalorizar o próprio sofrimento. Na verdade basta um pequeno esforço em mudar o ângulo da visão para perceber que as coisas não são tão trágicas assim. Com um leve movimento rotativo do pescoço, você consegue perceber que todas as pessoas têm problemas, alguns deles muito maiores que o seu. A bem da verdade, com uma olhada mais apurada, você constata que há pessoas com problemas que fariam o seu parecer bem pequenininhos. O maior exemplo disso foi uma jovem garota que conheci faz uns meses, e que tem câncer há três anos. Mesmo podendo reivindicar para si o título de "maior problema do mundo", ela me surpreendeu dizendo ficou muito triste ao encontrar certa mulher bastante resmungona e mau-humorada no pátio de um hospital, que fazia questão de dizer a todos que a interpelavam: "não encha, você não sabe o que é conviver anos com um joelho reumático!". Minha amiguinha apenas sorriu e pensou: "puxa, ela tem um problema maior que o meu: eu tenho que aprender a lidar com a morte, ela sequer aprendeu a lidar com vida!".

E há ainda outro ângulo que convém lançar o olhar antes de dar nosso caso por perdido. Olhando para Cristo, não temos como nos sentir sozinhos. Ele está no comando, sempre! Então pra quê esse desespero? Tudo vai ficar bem, e não é porque sua mãe, namorada ou o Lair Ribeiro falou. É porque Deus está cuidando de tudo. Se você tiver fé para acreditar nisso e deixar que Ele faça a Sua parte, o tamanho do problema diminuirá drasticamente diante de seus olhos.

Há algum tempo li certa frase de um autor que não lembro de jeito nenhum. Até pesquisei bastante para ver se achava ela na internet, mas nem o google me socorreu, então me resta apelar para minha falha memória: "Não se atormente tanto por um problema. O que é a maior das tragédias depois de dez dias?". Você pode escolher ficar com os olhos bem fixos na sua mágoa, decepção, tristeza, saudade, frustração ou derrota. Ou pode olhar em volta e para cima, e renovar a fé na vida. Deus já escolheu que você vai vencer, só espera que você aceite esse fato, para poder torná-lo realidade em sua vida. Enquanto isso acontece, perceba as tragédias alheias e ocupe-se de amenizá-las: é uma forma bastante eficaz de esquecer suas mazelas. Mas não dê muita atenção as próprias tragédias, que elas vão passar, e daqui a dez dias já não serão tão grandes assim, afinal a vida ainda tem que continuar. Ora, a maior tragédia de todos os tempos, durou somente três dias. Mas ao terceiro dia Ele ressuscitou! E agora cá estamos nós, destinados para a vida em abundância!

Uma semana iluminada,

Luciana