domingo, 1 de dezembro de 2002

Senhor, serei eu? (A Paixão Segundo São Mateus)

Uma das mais belas obras de música sacra chama-se “A Paixão segundo São Mateus”, de Bach. Paixão era como se chamava o relato do sofrimento e crucifixão de Cristo, nos quatro dias que antecedem a páscoa. Cantar a Paixão de Cristo era tradição na liturgia da igreja católica desde o século XIII, que mais tarde foi introduzida na liturgia protestante por Martinho Lutero, e alcançou seu clímax em Bach, que a apresentou na forma de oratórios, com os episódios bíblicos cantados ou recitados por solistas, intercalados de passagens meditativas feitas por dois coros, e passagens instrumentais realizadas por uma pequena orquestra.

A Paixão Segundo São Mateus foi apresentada pela primeira vez em 1729, na igreja de São Tomás em Leipzig. E depois que toda a Europa havia esquecido que um dia existira um compositor chamado Bach (pois é, os gênios quase nunca são reconhecidos em seu tempo), esta obra foi reapresentada em Berlim, exatamente cem anos depois, sob a regência de Mendelssohn. O impacto que esse oratório causou então, foi tão grande, que fez a obra de Bach ser “ressuscitada” para a eternidade, pois vem sendo estudada e reconhecida como um dos cumes da História da Música.

Certo historiador classifica “A Paixão Segundo São Mateus” como uma obra de tão profunda emoção religiosa a ponto de converter um ateu . De fato, ela é de uma mensagem tão poderosa, musicalmente falando, que já se deu a Bach o título de “Quinto evangelista”.

Um dos curiosos recursos de Bach, que transparece perfeitamente nessa obra, é o modo como ele utiliza o coral para conseguir trazer a mensagem bíblica para mais perto dos ouvintes, de modo a fazê-los integrarem-se nela. Em detrimento da orquestra barroca, que era, comparada a de hoje, bem pequena, Bach fazia questão que sobressaísse a voz humana, e para tanto utilizou-se de toda a estrutura que a igreja de São Tomás podia comportar: espaço para dois coros, cantando em oito vozes distintas. Essas vozes, através de simbolismos muito bem explorados pela música dele, leva os ouvintes, de mero espectadores para participantes da cena cantada. A pregação não se limita a uma narração, a exposição de um drama ou sermão distante: o coral permite que Bach transforme a música em prece íntima, e realize a introspeção da mensagem na congregação.

Um exemplo desse magnífico efeito está na primeira parte da Paixão Segundo São Mateus, que expõe o momento em que Jesus anuncia aos discípulos que será traído. “Um de vós me trairá”, canta a voz do baixo. O narrador diz: “E eles, mutíssimo tristes começam a perguntar..” (Mateus 26:22). Então entra o coro dramático dos apóstolos perguntando “Senhor, serei eu?”, pergunta que é repetida onze vezes, o que nos faz lembrar que Judas calou-se. Nesse momento, todos esperam que se siga a narração conforme está na Bíblia, com Jesus indicando os sinais do traidor. Mas isso seria o óbvio, e Bach, cuja maior preocupação está em mostrar Deus em sua música, não poderia se conformar com o óbvio. A pergunta “Senhor, serei eu?” ainda está suspensa por um acorde interrogativo. Que faz Bach então? Quando todos esperam que Jesus diga que Judas é o traidor, entra um novo coro de vozes, que representando as vozes da congregação, anuncia: “Sou eu!”. De repente, os olhares que voltavam-se para Judas, passam a olhar para si mesmos, e cada pessoa presente na igreja passa a se sentir-se pessoalmente culpada pela morte de Cristo. E ao contrário do que poderia se imaginar, esse coro não tem em nenhuma de suas notas um tom acusador, mas contrito, de um pecador que se reconhece mau. Ninguém pode ouvir esse coro sem sentir em seu coração que, em algum momento, também traiu Jesus, e merecia sofrer as penas do pecado no lugar dEle. “Vossos sofrimentos redimiram minha alma”, termina o coro deixando emocionado e surpreso o ouvinte.

Só depois disso é que o relato prossegue. Judas pergunta: “Senhor, serei eu?” e Jesus termina afirmando: “Tu o disseste”. Pronto, Bach conseguiu fazer-nos entender um pouco mais do amor infinito de Cristo. Não um Cristo que chama nossos nomes para acusar, mas um Cristo que por Seu sacrifício de amor nos constrange a reconhecermos nossas culpas. Um Cristo a quem nós, todos os dias, crucificamos mais uma vez, e traímos com a mesma maldade de Judas, quando cedemos ao pecado. E que ainda assim, sofreu para redimir nossas almas. Bach não nos deixa imaginar que, sequer aquele “Tu o disseste”, não tenha sido dito com amor e compaixão.

Cada vez que condescendemos com o mal, traímos nosso amado Salvador. A dor que isso causa nEle é tão forte como uma das marteladas que cravaram os pregos em Suas mãos santas. Mas o mesmo sangue inocente que se derrama dessas mãos, é o sangue que nos limpa e reconcilia uma vez mais com Deus, quando nos arrependemos sinceramente de nossos pecados. A culpa do pecado, que é também a culpa que temos pela morte de Cristo, não nos é imputada somente devido a graça amorável dEle. Que ao começarmos esta semana possamos perguntar: “Senhor, serei eu? Serei eu quem esqueceu de amar-te a Ti e ao meu próximo como devia? Serei eu quem está te traindo através de pensamentos, palavras, ações e omissões?”. E quando nos vir arrependidos de nossa culpa, Jesus chamará o nosso nome, não para nos acusar, mas para nos dizer: “Filho, alegre-se! Perdoados estão os teus pecados” (Mateus 9:2).

Eis, Jesus estende Suas mãos para nos segurar. Vem!
Onde?
Para os braços de Jesus! Procura redenção, procura misericórdia, procura-te!
Onde?
Nos braços de Jesus! Vive, morre, fica aqui, Tu aflito. Fica aqui.
Onde?
Nos braços de Jesus!


Mas isso já é outro coro...

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 24 de novembro de 2002

Mefibosete

Ele é um daqueles personagens sem muitas glórias para contar, que ficam escondidos nas histórias bíblicas. A forma mesmo como aparece pela primeira vez é trágica: aos cinco anos, Mefibosete sofre um acidente que lhe deixa deficiente das pernas para o resto da vida. (II Samuel 4: 4). Mas nenhuma história está registrada na Bíblia por acaso, e apesar de obscura , a vida desse homem tem algo a nos contar.

Com a morte de Saul, toda a sua descendência andava temerosa. Embora sabendo que Davi era um homem justo e temente a Deus, não faltavam pessoas – aqueles bajuladores de plantão – dispostos a acabar com a descendência de Saul para mostrar-se do lado do rei, tanto que Isboete, um dos filhos de Saul, foi morto justamente por essa causa (II Samuel 4:8). A sensação para a família de Saul é que muitas cabeças iriam rolar, literalmente...

Mas ao invés de aproveitar a oportunidade para vingar-se da família cujo patriarca passara a vida inteira lutando contra si, Davi permanecia fiel a promessa que fizera a Jônatas, filho de Saul, de que jamais levantaria a mão contra um descendente seu. Por isso, depois de vitorioso, no auge de seu poderio, Davi ainda lembrava-se da aliança que fizera com seu amigo, e certo dia inquietou-se: “Resta ainda, porventura, alguém da casa de Saul, para que eu use de bondade para com ele, por amor de Jônatas?” (II Samuel 9: 1).

Havia. E que era? Mefibosete! O curioso é observar que, originalmente, ele se chamava Meribe Baal (I Crônicas 9: 40), que significa “combatente contra Baal”. Ele nascera para ser um herói corajoso! Mas agora se transformara apenas em Mefibosete, que significa “propagador da vergonha”. A queda de seu avô Saul o arrastou para a miséria, a ponto dele considerar-se a si mesmo com um cão morto (II Samuel 9: 8). Então eu penso em quantos filhos que nosso Deus destinou para a luta, para a batalha pelo bem, para a vitória sobre os males deste mundo. Mas estes filhos acabaram sendo arrastados pela miséria de outros, caindo tanto ao ponto de serem apontados como “propagadores da vergonha”. O apóstolo Paulo adverte: “Aquele que pensa estar em pé, cuide para que não caia” (I Cor. 10: 12). Veremos muitas pessoas caindo ao nosso redor durante a caminhada cristã. Algumas dessas quedas terão tal impacto sobre nós, que, ao olhar ao redor, nosso primeiro impulso será desistir também. Mas o fato de algumas pessoas abandonarem a verdade, não significa que a Verdade desvaneceu, nem temos que cair também, traindo o destino para o qual Deus nos reservou: o de combatentes caminhando para a vitória certa.

E quando alguém cai, onde pode ser encontrado? Certamente não perto da glória. “Onde está?”, Davi perguntou. E seu servo foi achar Mefibosete num lugar chamado Lo-Debar, que significa “sem pastagem”, “que não é nada”, “é sem valor”. “Onde estás?”, perguntou Deus a Adão logo após sua queda. E foi achá-lo escondido e com medo por entre as árvores. “Onde estás?”, pergunta Jesus ainda hoje quando nos afastamos de Seu convívio. E a resposta nunca aponta para um lugar melhor do que aquele onde estávamos junto dEle. Longe da companhia gloriosa de Cristo, podemos até encontrar refúgio, mas não em algo que tenha real valor.

Imagino a cara de Mefibosete quando foi procurado pelos servos de Davi. Ele deve ter ficado mortalmente assustado. O que o Rei poderia querer com ele, descendente de um homem que o combatera a vida inteira? Mas ao encontrar-se com Mefibosete, Davi disse aquilo que Deus sempre diz quando quer ganhar a confiança de um pecador: “Não temas!” (II Samuel 9: 7). Embora naquele momento Mefibosete representasse a própria miséria, Davi usou de bondade e misericórdia para com ele, por que é justamente a fraqueza que atrai a graça. Aquele homem, deficiente, representante da derrota e da estultícia de seu avô Saul, foi recebido com amor, reconduzido a uma vida digna e passou a se alimentar na mesa do Rei. Bem, você pode imaginar que para o padrão da época e mesmo de hoje, Mefibosete não fosse considerado pelas pessoas exatamente um enfeite para mesa real. Mas Davi o amava, porque via nele traços de seu amigo Jônatas.

Qualquer semelhança com a graça de Deus não é mera coincidência. É quando reconhecemos nossa fraqueza e feiúra espiritual, que Deus é atraído para transformar-nos, e “nos faz assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus, para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conosco...” (Efésios 2: 6 –7). É quando não temos nada para barganhar com ele, quando percebemos que todas as nossas boas obras e lista de regras bem cumpridas não são suficientes para encobrir nossa condição miserável, que podemos entender a Sua maravilhosa graça: não temos nada em nós que nos justifique, mas Ele vê em nosso ser traços de seu filho Jesus Cristo, e pela aliança firmada na cruz, nos ama infinitamente.

A história de Mefibosete poderia ter terminado por aí, mas infelizmente vamos encontrá-lo novamente em II Samuel 16: 1 – 4, em maus lençóis. Ziba, seu servo, além de lhe roubar os alimentos, ainda o acusou de querer tomar o reino de Davi. Este por sua vez, que estava no meio de uma fuga de Absalão, e sem muita condição de averiguar a veracidade da informação, deu a Ziba tudo que pertencia a Mefibosete. Se ele não fosse coxo, poderia ter acompanhado o Rei, e Ziba não teria passado-lhe a perna e roubado todos os seus bens. Nesse ponto eu pensei comigo: “coitado do Mefibosete!”, mas ainda aí há uma lição para aprendermos.

Espiritualmente, não podemos passar a vida inteira na mesma condição com que fomos achados. Deus nos recebe como somos, com todos os nossos defeitos, mas se não formos transformados, se não desenvolvermos nossas próprias pernas para acompanhar o Rei onde quer que Ele vá, chegará um momento em que poderemos perder tudo aquilo que nos foi dado. E nossas deficiências espirituais só são sanadas por meio de uma busca constante pela santificação, ou seja, por pôr em prática em nossas vidas o amor que aprendemos dEle. Há a tentação de se acostumar às mordomias da mesa do Rei, e acomodar-se em usar muletas para se movimentar. A religiosidade ritual pode ser uma muleta. A vida social que a igreja proporciona, as pequenas satisfações de cantar, pregar, evangelizar, tudo isso é uma bênção se não for usado como mera muleta para estar no palácio do Rei. O motivo de estarmos com Ele deve ser primeiramente Ele mesmo. Tudo o mais, ainda que importante, não deve ser o determinante em nossa vida cristã. Chegará o momento em que tudo que fazemos na igreja, todos os nossos pequenos rituais, obras, cargos e títulos não serão o bastante para nos permitir andar junto ao Rei. E é nesse momento que corremos o perigo de perdermos toda a herança que nos foi dada...

Que nesta semana possamos meditar uma vez mais sobre a graça de Deus em nossa vida, e deixar que ela nos transforme, para que possamos ser vigorosos combatentes de Baal, não simplesmente acomodados a vida exterior de convivas do Rei, mas vivendo interior e plenamente a condição de Príncipes do Reino Celestial.

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 17 de novembro de 2002

Milagrinhos

Pequenos milagres é que me fascinam. Os grandes são fáceis de ver, e já existe gente demais falando deles. Do outro lado existem pessoas que, sem poder contestá-los, convivem confortável e alheiamente com o fato de que Deus existe. Pequenos milagres exigem um olhar mais atento, e quando percebidos fazem exclamar "Deus existe mesmo, e na minha vida!". Pequenos milagres convertem. Falemos de coisas pequenas então.

Por duas semanas eu me preparei para apresentar um seminário sobre Processo Penal. Queria fazer meu melhor e para isso não poupei esforços: sacrifiquei horas de sono, lazer, deixei de estudar para outras provas priorizando esse seminário. Na noite anterior à apresentação, depois dos indefectíveis ensaios diante do espelho, olhei os rascunhos e anotações satisfeita e fui dormir. Mas por um desses mistérios insondáveis do universo, o despertador não tocou pela manhã, e eu acordei na hora exata: na hora exata em que deveria estar começando o seminário... Desesperada, pensei em todas as possibilidades de chegar até à faculdade com apenas quinze minutos de atraso, mas a única coisa que me ocorreu foi um helicóptero, e não havia nenhum por perto, então, tal qual o salmista às margens dos rios da Babilônia, eu sentei e chorei.

Estava tudo irrecorrivelmente perdido. Restaram apenas as imprecações contra meu despertador, meu sono de pedra, e é claro, umas reclamações contra Deus, que bem poderia ter me dado uma forcinha e, levando em conta meu esforço, ter dado um jeito de me acordar a tempo. Por que não? Ele não é capaz de coisa bem maiores? E não se preocupa com pardais? Por que não poderia dar uma olhadinha pra mim quando preciso? Então me entristeci conformada, pensando que Ele devia ter mesmo coisa mais importante para fazer, que detalhes da minha vida dizem respeito somente a mim, Deus não poderia se ocupar de coisinhas do meu dia-a-dia, Ele não pode ligar para as pequenas preocupações que cada filho encrencado resolve lhe jogar nas costas. "Sei lá, deve estar resolvendo alguma questão na Palestina", pensei, e liguei para um colega a fim de avisar que eu não poderia ir. Ele disse:

- Ah, tudo bem,.o professor não veio.

- An??????

- É, como ele nunca se atrasa, e já são sete horas e dez minutos, pode ter certeza que ele não vem mais.

É, ele não foi. Não tenho idéia do que o fez faltar, especialmente porque isso não é comum. Só sei que no momento que desliguei o telefone me senti a própria Scarlet Ohara em "O vento Levou", cabelos desgrenhados ao vento, maquiagem borrada, dizendo: "Jamais sentirei falta de fé outra vez!!!"

Bem, eu poderia fazer apenas o normal e exclamar: "Ufa! Que sorte!". Poderia apenas ficar com essa "feliz coincidência" e seguir meu caminho. Mas sinceramente, o que ouvi foi um Deus amoroso dizendo: "Ei, você sabe que me preocupo com as aves do céu e com os lírios do campo, mas também me preocupo com você, e no momento o que você estava precisando mesmo não era de um despertador, era dormir!!". Reconheço que minha vida é uma sucessão de pequenas e felizes coincidências, algumas das quais eu nem sei que aconteceram, outras cotidianas, mais ou menos vistosas, mas sinto que muito do que acontece em minha vida não é fruto apenas do que eu faço ou deixo de fazer. E eu teria que fazer um esforço muito grande para crer que isso são só coincidências, quando o mais evidente é que Ele cuida de mim. Sim, mesmo nos mínimos detalhes.

Mas é sempre a mesma coisa: não vemos os pequenos milagres e esquecemos os grandes. Por que não admitimos que Deus pode interferir em pequenos episódios de nossa vida e mudar decisivamente a direção ou fim de um episódio, em nosso favor? Por que preferimos chamar isso de sorte, coincidência ou intuição? Certamente admitir uma intervenção divina exigiria de nós uma resposta, nem que fosse gratidão, e não queremos sentir que "devemos algo" para alguém, especialmente quando esse alguém é Deus (fomos ensinados que não se dá nada sem se cobrar algo em troca, e sabe-se lá o que Deus pode cobrar de nós!). Ver pequenos milagres, consiste em admitir que Deus existe e está presente em nossas vidas. Até onde essa presença nos incomoda, desnuda ou constrange? Crer em pequenos milagres é bem mais difícil que crer em grandes milagres. Grandes milagres geralmente são com os outros, pequenos milagres vão insistir em me dizer respeito! Pode-se lidar razoavelmente com o fato que Deus tem o mundo nas mãos, mas quão perturbador é perceber que Ele tem justamente a minha vida nas mãos dEle! E tudo bem que se importe com a Palestina, mas como encarar tranqüilamente o fato de que Ele se importa comigo e meus menores anseios, problemas e dificuldades? E se Ele resolver me cobrar caro pelo excesso de zelo? Se quiser que eu seja mais grato que eu gostaria de ser? Se descobrir que prestando tanta atenção em mim Ele não vai ter lá um retorno tão grande em termos de investimento?

Ora, Deus quer mais é saber de amar você. E enquanto você estuda sua reação e conseqüências diante dEsse amor incompreensível, Ele vai mostrando do que é capaz um ser humano.

Venha aqui para o evangelho de João 20: 11. Lá está Maria chorando e chorando, totalmente concentrada em sua dor. "Ai, roubaram o corpo de Jesus, era só o que faltava. Não podiam tê-lo poupado de mais esse sacrilégio? Ai, se eu soubesse onde está o corpo dele...". Então Jesus aparece para ela. Sabe o que imagino? Jesus havia acabado de ressuscitar. Ele agora subiria aos céus, que em festa, cheio de júbilo e ansiedade o esperavam para honrá-lo como o Príncipe da Vida e saudá-lo vivamente, dando a afirmação de que seu sacrifício expiatório fora aceito. Jesus só tinha que subir e correr para o abraço, literalmente. O Seu próprio Pai O esperava cheio de vontade de abraçá-lo, de tê-lo de novo consigo depois de um tempo tão doloroso de afastamento. Jesus, por sua vez, estava prestes a se desprender da miséria humana e adentrar de novo no seu Lar original, cheio de glória, luz, lugar perfeito de onde ele estava cheio de saudades. Lá ia Jesus... mas ouviu Maria chorar. E deu meia volta. Foi até ela, e com todo o carinho deste e do outro mundo, dissipou-lhe a tristeza anunciando que havia ressuscitado e estava indo ver Seu Pai, deu-lhe o mais animador de seus sorrisos, e só depois de deixar Maria feliz foi que Ele continuou seu caminho rumo a um Céu glorioso... mas que podia esperar. (ver "O Desejado de Todas as Nações" de Ellen G. White, págs. 788 a 791)

Percebe? Jesus não resiste a uma lágrima humana. E uma só lágrima de sofrimento de um único filho seu é capaz de fazer Ele deixar um céu inteiro esperando, só para devolver o sorriso àquele filhinho. É esse Deus de amor que eu conheço e vejo agir em minha vida. Nenhum detalhe do meu viver é demasiado pequeno para que Ele não se importe, ou não haja quanto a isso em meu favor. Por isso me fascinam os pequenos milagres, e perante as coisinhas menores da minha vida é que sempre peço com mais ardor: "Pai converte os meus olhos para que te vejam, converte a minha memória para que ela jamais esqueça que Tu és Deus."

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 10 de novembro de 2002

Então tá

(O diálogo a seguir não é ficção. Aconteceu sexta-feira, por volta das dezesseis horas tendo por cenário um ônibus lotado. Por partir de crenças muito pessoais a respeito do conceito de Deus, não o recomendo para quem ora apenas de joelhos e só se dirige a Ele na segunda pessoa do singular.)

- Então tá, é o seguinte: eu preciso cuidar da minha vida.

- Tá.

- Tá? Assim, você não vai me contestar?

- O que eu posso dizer? Se você decidiu assim, eu só posso aceitar e continuar do teu lado. Não acho que qualquer coisa que eu fale agora vá fazer você mudar de idéia.

- Talvez! Por isso vim aqui falar com você.

- Quando você me chamou achei que tinha algo a me dizer, apenas. Não consegui perceber uma intenção de diálogo.

- É, é verdade, mas eu deixo você falar. O que me dá raiva é que no fim você sempre tem razão.

- ...

- E sempre faz minhas razões parecerem tão ridiculamente pequenas, que eu acabo voltando atrás e fazendo a sua vontade.

- E isso é ruim?

- Não, não é que seja ruim, mas no final de tudo fica parecendo que eu sou a única pessoa do mundo que ainda se importa com isso. Entende? Me sinto anacrônica, deslocada, um ET que nunca vai aprender a viver aqui.

- Você pode tentar aprender a viver aqui, na verdade eu até espero que você consiga. Mas meus planos pra você vão além disso. E se você quiser ir além deste mundo, não vai conseguir se adaptar aqui mesmo.

- Tá vendo? Então eu vou passar o resto da minha vida me colocando em segundo plano? Eu ainda vivo aqui, tenho que pensar no que está acontecendo agora, ao meu redor. Foi isso que eu vim te dizer, acho que você cuida bem de mim, mas eu também preciso fazer isso de vez em quando. Acho que eu posso me virar sozinha às vezes. Não acho que se eu deixar de fazer certas ações, isso vai alterar a ordem das coisas, no final tudo vai ficar bem. Sabe, acho que não sou insubstituível. Por que eu tenho que fazer certas coisas? Você não pode colocar alguém pra fazê-las em meu lugar?

- Posso.

- E então, tou liberada?

- Do quê?

- Ora, de fazer as coisas tão certinhas! De ser tão boazinha e levar sempre a pior!

- Mas você faz assim porque quer! Porque você é assim. Porque quer fazer o que eu quero pra você, você mesma decidiu isso, não foi? Como você pode se liberar de você mesma?

- Ai, ai, lá vem você dando um nó na minha cabeça de novo. Ta vendo, é impossível ter um diálogo com você...

- ...Sem que você consiga driblar o que você de fato é. Mas é um fato, você não pode correr tão rápido que consiga escapar de você. Pode fingir não me ouvir, pode arquitetar suas desculpas (e você é boa nisso!), mas quando tiver certeza que está "livre" para fazer tudo o que quer, me responda, será que você estará finalmente feliz? Você acha mesmo que o que você não encontrou aqui dentro, poderia encontrar lá fora? Acha que construindo um mundo só seu, você se sentirá segura enfim? Bem, você sempre esteve "liberada" para fazer o que quiser. Eu vou continuar te amando e esperando. E aposto três estrelas como minha fidelidade dura mais que sua satisfação lá fora. Hmm... diga apenas, para onde você iria?

- Ah, não sei, o mundo é tão grande... que dá até medo. E se eu deixar de amar você? Você sabe, a gente pode cortar a convivência, então com o tempo eu vou deixando de te amar.

- Pode ser, com certeza. Mas mesmo sem me amar, você ainda vai se lembrar que os melhores momentos de sua vida foram passados do meu lado. E eu vou continuar te amando, já disse, e esperando você voltar pra gente conseguir viver uma vida toda de felicidade juntos e não só alguns momentos.

- Olha, bonita sua conversa, mas na prática a gente sabe que não é assim. Não dá pra ser feliz com tanta gente fazendo as coisas erradas, que ainda dizem estar do teu lado. Não dá pra ter uma vida inteira de felicidade tendo tanta gente ao redor destruindo o que você lutou pra erguer, arrancando o que você plantou, semeando mentira onde você se esforçou pra fazer brotar a verdade. Ninguém pode ser feliz tão plenamente, vendo pessoas sendo enganadas, maltratadas, negligenciadas física, social, emocional e espiritualmente, por outras pessoas que só se importam em manter uma fachada de "bom cristão". Como conciliar felicidade e hipocrisia?

- Eu falei de felicidade, não de perfeição. A perfeição não é pra agora, menina impaciente...

- Num me xinga não!

- Não estou xingando. Nem mentindo, certo?

- Só porque você me conhece não precisa ir apontando os defeitos, ora...

- Falei de felicidade, porque me referia a estarmos juntos. A maioria do tempo as coisas não vão mesmo estar bem. Alguns dos seus planos vão dar errado, outros vão ser destruídos a despeito de todo o seu esforço pra fazer o que é certo. Eu gostaria muito que não fosse assim, mas só posso agir quando chegar o tempo certo, e até lá preciso de sua confiança. Nós podemos ter uma vida inteira de felicidade, sim! Todos os momentos felizes que tivemos juntos não foram por causa da alegria contida neles. Fomos felizes mesmo em alguns dos seus momentos mais difíceis, só porque estávamos juntos. E quando te prometo uma felicidade perene, não estou falando que tudo vai ser sempre flores, mas que podemos estar sempre juntos sempre, ininterruptamente.

- Mas tem tanta coisa errada...

- Bem-vinda ao planeta Terra! Não adianta fingir que não é com você. Tem um monte de pessoas olhando pra você e esperando o que você vai fazer.

- Isso é assustador... Quer dizer, sou tão... tão...nada!

- Eis o ponto de tensão: o que você é, e o que você pode ser. Como as coisas estão e como elas poderiam ser.

- E se eu não conseguir? Se eu cair fora ou simplesmente cair derrotada no chão?

- Bem-vinda à resistência. Eu posso te garantir paz enquanto você lutar.

- Que paradoxo!

- De fato, mas é assim. Não posso te dar muitas respostas agora, porque você não está preparada pra entendê-las. Também não posso prometer que você vai sempre ganhar e ver as coisas dando certo. Mas posso prometer - e já prometi - paz. A minha graça te basta.

- Ô frase difícil e engolir! Pode ser que não baste, já parou pra pensar nisso?

- Ah, já sim. Mas eu não afirmaria com tanta certeza se não soubesse: minha graça te basta.

- Ta. Então digamos que eu te confesse que certas verdades que eu vivia e pregava com tanto fervor há uns anos atrás, já não têm a mesma força sobre mim. E aí?

- E aí que essas verdades não deixarão de ser verdades só porque você não as vive mais. E nem tente fazer sua versão para elas, porque você sabe que essas verdades são absolutas. As únicas coisas absolutas no universo. Embora haja tanta gente empenhada em negar isso para tentar se autojustificar. Você quer ser mais uma?

- Eu não. Mas a gente cansa, sabe? Não, por favor não me fale de exemplos bíblicos, de personagens bravos e fortes que não são eu. Não me cite os velhos versículos como aquele "mas os que esperam no Senhor renovarão as suas forças..."

- Tu o disseste! Eles são velhos mas ainda são pra você...

- E se eu cansar de ver que ninguém mesmo liga pra certos valores?

- Eles continuarão sendo os valores certos. E você saberá disso enquanto viver.

- E quanto tudo parecer irreal? Quando minhas crenças parecerem, aos olhos de todo mundo, algo sem nexo? Vou ter que passar o resto da vida estudando teologia, apologia, argumentação, e me matando com as refutações da alta crítica?

- Se você acreditar, já será real. E todos verão isso.

- Voltamos à fé...

- É... a fé, que você ainda tem aí dentro, e por menor que possa parecer, é sempre suficiente para criar raízes e dar frutos. O grão de mostarda, lembra? Eu acredito na qualidade da sua fé. Se ela não fosse das boas, você não estaria falando comigo no meio desse ônibus lotado.

- Tem razão, desculpa de tê-lo feito vir aqui, é que era urgente...

- Tudo bem, estou mais confortável que você.

- Então tá, é o seguinte, acho que você ganhou outra vez.

- É? Então exijo um pôr-do-sol ao seu lado.

- Mas não saia de perto de mim nunquinha, tá certo?

- Nem você, combinado?

- Combinado, prepare aí seu melhor pôr-do-sol e vamos ver se depois de milênios você ainda não enferrujou.

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 3 de novembro de 2002

A maior tragédia

Outro dia, eu e umas amigas conversávamos sobre as manias curiosas que as crianças têm. Eu contei, achando-me o mais esquisito dos seres, que quando era criança e minha mãe me batia, eu ia para o meu quarto, ligava o rádio numa música romântica, bem triste, e só então chorava com gosto minha mágoa, que acentuada pela melodia ganhava ares de tragédia. Outra amiga contou que, bem pequena, quando estava chateada ou sentia alguma dor, puxava bastante os próprios cabelos pra dor aumentar e ela chorar com mais força ainda. Mas quem ganhou mesmo foi outra amiga, que relatou, vitoriosa, que quando levava umas boas palmadas da mãe, ia para frente do fogão na cozinha, e ficava olhando fixamente no vidro do forno, o rosto coberto de lágrimas, e então chorava mais, como se estivesse vendo a sua própria dor sendo encenada na televisão.

Não importa o que dizem as estatísticas da ONU: nós sempre vamos achar que nossas próprias tragédias merecem toda atenção. É da natureza humana encontrar sempre algo para queixar-se, e por menor que o problema eleito pareça aos olhos dos demais, ele costuma ser tratado com tamanha ênfase que ganha ares de insolubilidade. "Ai, minha unha quebrou, que desgraça!", e acredite, o sofrimento é verdadeiro e plenamente justificável: "Você tem idéia de quanto tempo esperei esta unha crescer? De quanto gastei em esmalte fortalecedor? Do envolvimento emotivo e cósmico que eu tinha com essa unha?"

Brincadeiras à parte, todos nós, pelo menos uma vez na vida, nos vimos às voltas com algum grande problema, aparentemente sem solução. Daqueles frente aos quais nos sentimos completamente impotentes. Ou ainda daqueles que desabam depois de você ter dedicado um tempo e esforço enorme investindo para que algo fosse adiante, e no fim alguém - que não está realmente interessado na sua dedicação - põe todos os seus planos a perder. Seja qual for a descrição do grande problema, ele é será sempre trágico aos olhos de quem o viveu (mesmo aos olhos daqueles que disfarçam muito bem).

Esta semana, mais uma vez, Deus me falou que no perfil de um cristão não se encaixa bem essa tendência humana de supervalorizar o próprio sofrimento. Na verdade basta um pequeno esforço em mudar o ângulo da visão para perceber que as coisas não são tão trágicas assim. Com um leve movimento rotativo do pescoço, você consegue perceber que todas as pessoas têm problemas, alguns deles muito maiores que o seu. A bem da verdade, com uma olhada mais apurada, você constata que há pessoas com problemas que fariam o seu parecer bem pequenininhos. O maior exemplo disso foi uma jovem garota que conheci faz uns meses, e que tem câncer há três anos. Mesmo podendo reivindicar para si o título de "maior problema do mundo", ela me surpreendeu dizendo ficou muito triste ao encontrar certa mulher bastante resmungona e mau-humorada no pátio de um hospital, que fazia questão de dizer a todos que a interpelavam: "não encha, você não sabe o que é conviver anos com um joelho reumático!". Minha amiguinha apenas sorriu e pensou: "puxa, ela tem um problema maior que o meu: eu tenho que aprender a lidar com a morte, ela sequer aprendeu a lidar com vida!".

E há ainda outro ângulo que convém lançar o olhar antes de dar nosso caso por perdido. Olhando para Cristo, não temos como nos sentir sozinhos. Ele está no comando, sempre! Então pra quê esse desespero? Tudo vai ficar bem, e não é porque sua mãe, namorada ou o Lair Ribeiro falou. É porque Deus está cuidando de tudo. Se você tiver fé para acreditar nisso e deixar que Ele faça a Sua parte, o tamanho do problema diminuirá drasticamente diante de seus olhos.

Há algum tempo li certa frase de um autor que não lembro de jeito nenhum. Até pesquisei bastante para ver se achava ela na internet, mas nem o google me socorreu, então me resta apelar para minha falha memória: "Não se atormente tanto por um problema. O que é a maior das tragédias depois de dez dias?". Você pode escolher ficar com os olhos bem fixos na sua mágoa, decepção, tristeza, saudade, frustração ou derrota. Ou pode olhar em volta e para cima, e renovar a fé na vida. Deus já escolheu que você vai vencer, só espera que você aceite esse fato, para poder torná-lo realidade em sua vida. Enquanto isso acontece, perceba as tragédias alheias e ocupe-se de amenizá-las: é uma forma bastante eficaz de esquecer suas mazelas. Mas não dê muita atenção as próprias tragédias, que elas vão passar, e daqui a dez dias já não serão tão grandes assim, afinal a vida ainda tem que continuar. Ora, a maior tragédia de todos os tempos, durou somente três dias. Mas ao terceiro dia Ele ressuscitou! E agora cá estamos nós, destinados para a vida em abundância!

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 27 de outubro de 2002

Estigmas

Passamos a vida colecionando estigmas, não adianta o quanto tentemos andar na linha. Por mais que você tenha uma conduta ilibada, a qual sirva de modelo perante a maioria das pessoas que te cercam, tem sempre alguém mais perto que conhece seus pequenos - ou grandes - defeitos e é capaz de apontá-los com precisão, mesmo àqueles que nem mesmo você sabia ter.

Veja o meu caso. Na maioria do tempo tenho consciência dos meus próprios defeitos. Às vezes sou preguiçosa, impaciente, perfeccionista, e perco todas as canetas que me chegam à mão. Tenho, ao longo dos anos, buscado trabalhar nesses defeitos, muito embora continue colecionando erros e tampas de caneta solitárias. O curioso é que quem me conhece, mesmo depois de muito tempo, não consegue perceber com facilidade os defeitos que eu reconheço em mim. Por isso sempre me surpreendo com pessoas que elogiam meu empenho, paciência e maleabilidade. E ainda mais com as que me pedem canetas emprestado!

Mas a família possui uma habilidade admirável de achar aqueles defeitos que você nunca reparou, ou ao menos se esforçou bastante pra esconder. E o pior de tudo, é que os estigmas são formados justamente graças a essa habilidade. "Eu? Claro que não sou desastrada. Não, não lembro de deixar a luz acesa quando saio. Nunca destruí o coração de ninguém, que coisa! Não reparei que abro a geladeira toda hora, minhas refeições são bastante regulares. Eu não ronco feito um caminhão desgovernado!". Não adianta. Você provavelmente entrará para a posteridade como uma mulher desengonçada, pródiga, sentimentalmente perversa, com apetite descontrolado e o ronco mais aterrador da árvore genealógica.

O pior do estigma, é que ele é indelével. Quando você ousa ir contra ele, todos reagem como se estivessem assistindo a um novo ataque terrorista via CNN. Conhecida como a nerd que só ouve Mozart e Bach? Nem pense em se apaixonar! Se te pegam ouvindo Fagner, terá de suportar pelo menos meia hora de gargalhadas histéricas. Hoje, por exemplo, só porque eu comentei com a maior inocência do mundo que ía limpar meu quarto, sucederam-se vários comentários exaltados do tipo: "Nuuuuussa, salvou-se uma alma!!", "Gente, ela tá doente!!", "Hein??? Preciso de um cotonete...". Ora, ora, tudo bem, não tenho vocação pra Amélia, mas eu limpo meu quarto com regularidade, sim! É tão chato quando as pessoas te julgam incapaz de fazer algo, só por causa do teu histórico! Nós não somos robôs programados. Somos seres em constante mutação, passíveis de mudar e escolher um caminho diferente. Capazes de absolutamente tudo, inclusive de fazer o que menos se espera de nós. Digo, capazes de fazer as coisas certas! As coisas boas e nobres. Por que não? Capazes de amar! E de limpar o quarto!

Felizmente existe a piedade divina. E um Deus que não estigmatiza seus filhos. Ele não nos conhece como "o cara mais mentiroso do pedaço", "o crente que só ser certinho mas no final faz tudo errado", ou "a garota do ronco de 500 decibéis". Não nos chama por alcunha, nem nos julga por nossos históricos, não importa o quanto eles não nos recomendem. Não nos conhece pelo que fomos, ou pelo que dizem de nós, mas pelo que podemos ser. E quando permitimos, somos "justificados gratuitamente pela sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus" (Romanos 3: 24). Os estigmas que interessam para Ele em nossa história, são apenas aqueles que Ele carrega em Suas mãos.

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 20 de outubro de 2002

Da eternidade

É provável que eu já tenha falado isso antes, pode ser que você já o tenha ouvido também, e com certeza muitos falaram isso antes de mim. Mas eu insisto: falta-nos ainda a eternidade.

Há quem só consiga divisar tristeza e miséria neste mundo, mas eu ainda lembro com ternura da primeira citação de Ellen White que li, pouco antes de me batizar na igreja adventista: "O mundo, embora caído, não é todo tristeza e miséria. Na própria natureza há mensagens de esperança e conforto. Há flores por sobre as ervas daninhas, e os espinhos estão cobertos de rosas." É por causa dessas coisas que admiro a velha irmãzinha White. Me alegra partilhar desta visão cristã do mundo. Ainda há beleza, alegria, amor, felicidade, ainda há uma vida maravilhosa pulsando lá fora. Triste e miserável é quem tem olhos e não vê essa realidade.

Como se não bastasse toda a beleza deste mundo, Deus ainda nos fez capazes de melhorar e até mudar aquilo que está feio e defeituoso. Muitos preferem a religião confortável, que prega que o mundo não tem mais solução, e todos os problemas são fatos consumados, que as profecias determinam que já não haja amor nem bondade, que tudo está perdido e o que podemos fazer é aguardar Novos Céus e Nova Terra confinados aos limites dos nossos rituais. Mas eu tenho fé numa religião pregada por um Deus poderoso e ativo, inconformado desde sempre com o erro, o Deus que resolve os problemas ao invés de apontá-los alheio, e usa todos os instrumentos para fazer nossa vida aqui melhor. Um Deus tão convicto de seus ideais para conosco que atravessa séculos e séculos acreditando no ser humano, mesmo vendo os seres humanos acreditarem cada vez menos nEle.

O que a Bíblia fala sobre fé e cristianismo, diz muito mais respeito ao que podemos ser aqui, ao que podemos fazer uns pelos outros e pela causa da Justiça. A autêntica esperança cristã não espera sentada num banco de igreja por um mundo de delícias, mas transforma o mundo ao seu redor de modo a fazê-lo, desde já, o melhor lugar onde alguém poderia sonhar estar, sem ruas de ouro, é certo, mas ainda assim um lugar de paz onde Deus habita e o amor aquece suavemente.

Olhar o nosso mundo assim, como um lugar muito belo e bom, exige de nós um plus de sensibilidade, fé, trabalho e poesia. Exige coragem para realizar sonhos e sustentar crenças, exige também franqueza para admitir que nunca estará bom o suficiente, e a força dEle para impulsionar quando ninguém, mais ousar crer. Mas vale a pena, porque ser humano e não aproveitar o que há de nobre em nossa condição e belo em nosso mundo, é, no mínimo, um desperdício nada inteligente.

E se o fizermos então? Se aproveitarmos cada momento de felicidade, corrermos atrás de cada segundo de alegria e abraçarmos nossos sonhos fortemente, estaremos enfim completos? Pois é aí mesmo que eu suspiro: ainda não. No fim de tudo nós chocamos novamente com a lacuna, que se instalou no nosso peito desde que perdemos algo especial lá no Éden. Ai, ai, falta-nos ainda a eternidade. Não só para nós, mas para o nosso mundo. Mesmo as flores por sobre as ervas daninhas murcham, e lá se vão a alegria, a felicidade, o riso, a rosa. Mesmo quando sentimos que fizemos a nossa parte, e nosso mundo ao redor parece estar bem, lembramos que existem tantos outros mundos não alcançados por nossa boa vontade, lugares que só Ele pode atingir para fazer o bem ser completo. Quanto ao mais, a fé até fica, mas o trigo que ela regou morre (e há que morrer para virar pão). A esperança até permanece, mas os templos que ela ergueu, ruem à medida que o tempo passa sobre eles. E o amor, sim, o amor fica. Mas - que desgraça - investem dolorosamente contra ele, o egoísmo, a morte, e os aviões.

A efemeridade é uma doença pungente encravada na vida humana. Tudo passa e todos passam com pressa, em busca de coisas que se consomem cada vez mais rápido: veja o culto do meramente estético, veja os móveis à venda, veja as fotografias, veja sua coleção de medalhas, CDs e conquistas pessoais, veja o que você se tornou em face de tudo o que você sonhava.

Não é por isso que eu vou deixar de colher o momento, espero que você também não. Há muito para ser feito e vivido, há uma imensidão de vida urgindo nossa entrega intensa em prol da felicidade aqui. Mas não nos enganemos, queridos, que mesmo nos nossos mais belos quadros de felicidade, haveremos sempre de descobrir a falta de uma cor desconhecida, cujo nome é eternidade.

Que no ofício de viver - resumido afinal em buscar - possamos ao menos driblar a efemeridade construindo tudo que somos e cada momento que vivemos sobre o único alicerce Eterno. A busca não se completará aqui (não esqueça, buscai e achareis), mas alcançaremos nEle uma solidez segura. Porque enquanto o mundo humano não for perene, só Deus completará, com Sua eternidade, a lacuna insaciável que há em nós.

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 13 de outubro de 2002

O que preciso for

“Leve o que eu gosto mais
Se assim necessário é
Pra eu de Ti me aproximar.
Deixe vir decepções,
Solidão e desamor,
Pois assim, Pai, semelhante a Ti serei.”


Não lembro o nome da música, nem sequer o grupo musical que a cantava. Sei que hoje a acho meio feinha, e que foi uma das primeiras músicas que eu aprendi a cantar quando entrei para o grupo “Renascer”, um conjunto de cantores amadores que se reunia nos sábados à tarde da igreja de Igapó para ensaiar as musiquinhas dos grupos adventistas, com umas fitas de playbacks que eram de amargar!

Mas essa estrofe em especial nunca me saiu da cabeça. Quando eu a ouvi pela primeira vez, no ensaio do grupo Renascer, eu tinha apenas alguns meses de batizada, e ainda achava que tudo na vida cristã era alegria e ganho. Já havia feito algumas renúncias, mas nada que me desanimasse, pelo contrário! O ser humano tem até certo prazer em fazer determinadas renúncias, porque isso lhe dá uma inestimável sensação de nobreza. Abrir mão de algumas coisas sempre impressiona aos outros e a você mesmo, e quando essas coisas não são essenciais, elas se vão como a mais agradável dádiva. A gente se sente muito bom por fazer meia dúzia de feitos vistosos, mas um belo dia se dá conta que cristianismo é algo bem mais profundo. “Porque se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também os mesmo?”, então o golpe de misericórdia, “Portanto, sede vós perfeitos, como perfeito é vosso Pai celeste” (Mateus 5: 46 – 48)

Quando me falam de oferta, abnegação, entrega a Deus, eu lembro da minha prima Lane. Quem me conhece sabe que sou fã dela. Certa vez minha avó estava muito doente, e todos achávamos que a velhinha ía descansar definitivamente. Menos Lane. Ela, muito católica que é, fez uma promessa, e como não é de muitos rodeios, fez a promessa pra Deus, sem nenhum intermediário, porque ela queria mesmo falar com o Chefe. E a conversa foi rápida: “É o seguinte, se o Senhor curar a vó, eu nunca mais quero saber de pirulito.” Vovó se recuperou muito bem, e de fato, até hoje Lane não aceita pirulitos. E não vale tirar o palitinho pra fingir que é uma bala grande.

Acho que amor é isso. Não ofertar o sorriso automático, o gesto educado, a saudação de praxe, a dádiva que está à mão. É não se importar de abnegar mesmo aquilo que é mais importante, desde que isso signifique estar um pouco mais próximo do Amor.

Gostaria de começar essa semana pedindo que Ele levasse meu orgulho, minha ambição, minha dificuldade de perdoar, minha necessidade de provar que sou mais forte, minha vontade de dar o troco, minha tendência de desejar as coisas erradas, meu gosto pelas coisas más, minha preguiça de lutar um pouco mais, meu comodismo de achar que tudo deve ficar como está, minha falta de fé que sempre me diminui tanto. Isso tudo é doce ao meu paladar pecador, mas eu não preciso disso pra viver. Não vou ganhar muitos “louros” por fazer o que é certo, e é bem provável que ao fim eu esteja decepcionada, só, e não tenha conseguido o amor de muita gente. Mas Ele vai estar ao meu lado (coisa de Quem já viveu por aqui), eu vou estar limpa, e o que mais importa: ninguém terá roubado minha paz.

Uma semana iluminada!

Luciana

domingo, 6 de outubro de 2002

Na escuridão do meio-dia

“Eclipse total! Não há sol, não há lua!
Tudo é escuridão em pleno fulgor do meio-dia!”

("Samson Agonistes" - John Milton, 1671)

São com esses versos de Milton, que Georg Friedrich Handel começa uma das árias mais sentidas que ele já compôs. Ela faz parte do oratório “Sansão”, e a música é o lamento do herói bíblico, quando tem seus olhos vazados pelos inimigos e é jogado na prisão. Como sempre, Haendel consegue explorar esse momento com uma sentimentalidade comovedora através de sua música. E ela se torna ainda mais significativa quando descobrimos que alguns anos depois, Haendel iria morrer tão cego quanto o personagem do oratório, após uma desastrosa intervenção cirúrgica feita por certo charlatão especialista em matar gênios: anos antes fizera o mesmo com Bach. Hoje a ária soa, portanto, como o canto de agonia do próprio compositor.

O que mais me chama atenção nessa música é Sansão contrastar a escuridão de sua cegueira com a vasta luminosidade do meio-dia. A intensidade da luz, parece agravar nele a tristeza por não poder ver. Pois mesmo sentindo o fulgor dos raios do sol em sua pele, seus olhos estão mergulhados na mais negra visão do nada. Ele suporta a torturante angústia de ter sido homem escolhido para guiar todo um povo, e então, não poder guiar nem a si mesmo durante o dia. Chora o desespero de ter nascido para ser homem de valores elevados, olhado por todos para ser apontado como exemplo, mas acabar como aqueles que “de dia encontram as trevas, e ao meio-dia andam às apalpadelas, como de noite.” (Jó 5:14)

Ser cego ao meio-dia só é mais triste quando nos permitimos fazer uma analogia espiritual. Durante muito tempo, homens deram suas vidas para que hoje pudéssemos ter luz. Esses homens viveram num tempo em que a Bíblia era lida às escondidas, e eles não tinham liberdade para pregar a verdade tal qual Deus a estabelecera. Conheciam o Cristo vivo, fonte de toda Luz, mas tiveram, por amor a Ele, que enfrentar terríveis trevas. E não tiveram medo.

“Consola-te”, exclamou Latimer a seu companheiro de martírio, quando as chamas estavam a ponto de fazer silenciar-lhes a voz; “acenderemos neste dia na Inglaterra uma luz que, pela graça de Deus, espero, jamais se apagará.” (Ellen G. White, O Grande Conflito, p. 247)

Nesse tempo, os homens tinham pouca luz doutrinária e teológica, mas eram luz, sua fé ardia e inflamava. Brilhavam tanto a ponto de flamejarem como tochas vivas se preciso fosse. E por causa da fé e testemunho desses homens, que hoje nós temos tanta luz ao nosso alcance. A Bíblia e o conselho de muitos homens e mulheres de Deus, estão à nossa disposição, como raios luminosos, e a Igreja vive, nesse sentido, em pleno fulgor do meio-dia. No entanto, está essa luz incidindo sobre nossas vidas? Temos deixando Deus nos abrir os olhos para vê-la, ou continuamos presos a nossa mesquinhez e pobreza de espírito? Temos nos apossado dessa luz, ou andado como cegos, às apalpadelas, em pleno meio-dia?

Lembro uma pergunta de outro mártir, Tyndale, que apesar de ter sido usada em contexto diferente, pode ser bem empregada nesse sentido: “Deve a igreja ter menos luz ao meio-dia do que à aurora?”. Homens de fé deram a vida por valores que hoje estão se apagando gradativamente. Eles lutaram para nos dar uma Bíblia que já não lemos tanto, e menos ainda causa efeito sobre nossas vidas, embora sua luz continue mais e mais forte. Eles desafiaram sistemas seculares, para que hoje tantos não saibam dar a razão da sua fé, e pior, sequer vivam aquilo em que professam crer.

Desejo sinceramente que no início desta semana, não nos descubramos cegos em pleno fulgor do meio-dia. Que possamos nos propor novamente a sermos luz. Não como velas, que apagam ao soprar qualquer brisa. Mas como fogueiras, que quanto mais atacadas pelo vento, mas a sua chama se atiça. “Aqui está a perseverança dos santos...” (Apoc. 14:12)

Uma semana realmente iluminada!

Luciana

sábado, 28 de setembro de 2002

Intervenção

Somos três irmãs aqui em casa. Todas tem uma miopia acentuada, mas a mais nova, por um desses mistérios entre o céu e a terra, não pode usar nem óculos nem lentes de contato corretivas. A solução, portanto, foi a cirurgia. Em casa ficamos todos apreensivos (e completamente quebrados financeiramente), mas graças a Deus tudo deu certo, e hoje ela veio me contar os detalhes da operação – com o que conseguiu me convencer a usar lentes de contato para o resto da minha vida.

- Cita, primeiro ele coloca uma coisa assim que puft! Escangalha o olho. As pálpebras ficam arregaçadas e eu tive quase certeza que meu olho estava saltando pra fora. Aí ele enfia uma agulhinha, uma vez, outra vez... fura o olho todo, e tira o líquido de dentro dele. E ao mesmo tempo vai enxugando a córnea com uma espécie de gaze, e enxuga e enxuga, e eu comecei a fica agoniada com aquilo e “aaannnn” comecei a chorar... mas Cita, você não acredita, a lágrima não descia, eu acho que é porque ela entrava no buraco do olho ao invés de sair. Então quando eu achava que tinha terminado aquele suplício, veio o laser e “tchum tchum tchum” fatiou meu olho em pedacinhos. Cita, é sério! Subiu uma catinga de carne queimada!!! E eu desesperada com vontade de sair gritando, e o médico disse: “não se mexa se não o laser corta seu cérebro”. Acho que ele disse brincando, mas na hora eu não achei que ele tava brincando não. Então eu fiquei quieta né, até porque se eu corresse, meu olho podia ficar pendurado lá naquela coisa...mas deu uma coisa ruim, e eu aguentando, e não doía, mas me deixou tão aperriada que eu tinha vontade de gritar. Aí o médico dizia: “fale comigo”, e eu fazia “aaaaannn”, e ele me chamou de chorona. Então começou a me contar que tava estressado, que colocavam a culpa de tudo nele, que ia dar a maior confusão porque ele chegou atrasado, mas ele não tava nem aí, e se viessem reclamar ele ía quebrar tudo, e o homem começou a ficar nervoso, Cita, e eu pensava: “meu Deus, e se ele resolve se vingar me cegando?”, e ele continuava ali, falando afobado e fazendo a cirurgia como se estivesse cortando um bife na cozinha da casa dele. Ele ficava pingando um colírio o tempo todo no meu olho para dilatar a pupila, pingava, pingava, pingava, eu tomei um porre de colírio, porque ele descia pelo buraco do olho, entrava no nariz, depois na boca e eu engolia... fiquei muito doidona de tanto colírio que engoli, Cita! Aliás hoje de manhã acordei com uma dor assim no meu coração, mas não foi do colírio não, era gases...

Confesso que quase chorei com a descrição minuciosa dela. Nunca levei jeito para essas coisas de corpo humano, cortes, bisturis e afins. E só de imaginar alguém pegando em sangue ou mexendo numa coisa sensível como um olho já me dá arrepios, vontade de gritar também. Mas enfim, essas coisas são necessárias... minha irmã concluiu toda feliz:

- Ah, Cita, faz também! Quando termina você se sente um mestre pokemón porque consegue suportar tudo aquilo sem sair correndo... e depois fica vendo tudo melhor, brilhando, brilhando, olha que céu mais lindo!

Bem, ainda não foi um argumento bom o suficiente para me convencer a enfrentar o raiozinho assassino, mas me fez pensar numas coisas aqui com meus botões.
O processo de santificação exige que nos coloquemos por inteiro nas mãos de Deus a fim de sermos transformados à semelhança do Seu caráter. Você não é obrigado a isso, Ele te ama de qualquer forma, mas você reconhece – porque O ama – que cristianismo pede crescimento. Ser cristão não é um momento, é uma vida inteira. E à medida que nos aproximamos dEle, não temos como nos conformar com nossas deformidades, nossos paliativos. Queremos a liberdade de ser inteiramente dEle.

Reparar esses defeitos, no entanto, não é algo fácil. Às vezes é necessário perder, renunciar ou agüentar um pouco mais, mesmo que a vontade seja de sair correndo e gritando em direção oposta. Mesmo quando você tem fé suficiente para não sentir dor, é impossível não se sentir incomodar quando as transformações começam a acontecer. Paciência! Você passou uma vida inteira sendo meramente humano, não é sem algum esforço que alcançará a natureza celestial. Só para lembrar: “Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio...” (Gálatas 5: 223 e 23). Há mesmo momentos em que a intervenção divina parece brusca ou violenta, que Ele está sendo intrometido demais, ou que, puxa, não dava pra deixar eu viver um pouquinho mais minha miopia?... mas há escolhas que não se podem adiar, que podem pesar bastante na sua saúde espiritual. Decisões – difíceis – que só podem ser tomadas agora, ou nunca mais.

Se você decidiu seguí-lO, vai chegar o momento de sentir a intervenção divina de alguma forma. Estranhar Seus métodos é normal: talvez demore muito tempo para você ter capacidade de entendê-los. Também não funciona querer escolher os lugares onde você acha que Ele pode intervir. Suas mãos precisam tocar mesmo os lugares mais sensíveis, como os olhos e o coração: para que você veja com os olhos dEle, para que você sinta com o coração dEle, para que você seja o que Ele sonhou para você. E ser qualquer coisa fora disso é uma mentira.

O segredo é sempre o mesmo: “não temas, crê somente!” (Marcos 5:36). Resista, que a prova vai passar, e você pode suportar, senão Ele não permitiria que fosse assim, pois tocar você é tocar a pupila dos olhos dEle (Ui! Ui! Que agonia! - Zacarias 2:8). Fale com Ele, chore, grite se for o caso, mas deixe que Ele te transforme num ser mais elevado, enobrecendo seu caráter defeituoso, que, cá pra nós, a gente pode ser bem mais do que temos sido aqui. Quando a intervenção passa, você se torna mais forte, e depois fica vendo tudo melhor, brilhando, brilhando, olha que céu mais lindo!

Uma semana iluminada!

Luciana

domingo, 22 de setembro de 2002

Dor e prazer

Já ouviu falar da lei de Murphy? É uma lei metafísica que diz: “se alguma coisa pode dar errado, vai dar errado, na pior hora e da pior forma”. Ruim mesmo é que essa lei, comprovadamente, é como a da gravidade: não tem escapatória.

A coisa acontece mais ou menos assim: quando eu era bem pequena, minha mãe disse: “não suba aí que você cai, menina!”. E o que eu fiz? Subi e caí. E a experiência me trouxe dor e prazer. A dor de me machucar, mas o prazer de, em seguida, ver minha mãe correndo até mim, me afagando, cuidando de mim, me dando toda a atenção e carinho que ordinariamente eu não recebia. Então acabei buscando situações em que, com o mínimo de dor, eu pudesse obter o máximo de prazer. Quando eu tinha minhas crises de carência, típicas da síndrome da irmã do meio (a mais velha pode tudo, a mais nova é privilegiada, a do meio, nada), eu aparecia com alguma dor de barriga homérica, uma enxaqueca atormentadora, um machucado no pé que me impingia dores terríveis, uma cólica que me fazia perder os sentidos, ou coisa do gênero: aprendi a dramatizar ao máximo minha dor como meio de ganhar atenção. Mas a glória mesmo, veio aos doze anos, quando eu torci meu pé. Pisei em falso e o pé inchou levemente, praticamente não doeu, mas eu só saí do hospital quando consegui convencer o médico que aquilo era quase uma fratura exposta, e ele (tão bonzinho!) me deu uma linda bota de gesso, enooorme, para eu desfilar minha necessidade de carinho em grande estilo. Isso tudo é completamente doido, mas na época, pelo menos umas três colegas me confessaram que sonhavam em quebrar uma perna pra ter uma bota de gesso também.

Pois bem, eu cresci – um dia isso tem que acontecer – , e fui aprendendo aos poucos, que atenção e carinho são mesmo coisas maravilhosas, mas existem modos mais eficazes de obtê-los que fazendo chantagem emocional. Que a relação dor-e-prazer era desvantajosa, quando eu podia obter somente o prazer sem precisar me machucar. E ao invés de arriscar sentir uma dor para dramatizá-la eu podia simplesmente descartá-la e obter um amor mais sincero e verdadeiro fazendo tão somente o óbvio: valorizando a mim mesma, e amando meu próximo primeiro, incondicionalmente, sem cobranças. Isso causou uma revolução tal em meu modo de agir que eu nem me lembrava mais do meu passado de atriz. Até ontem.

Como sou estagiária não tenho direito a férias no trabalho. Por isso aproveitei as férias na faculdade para trabalhar dobrado alguns dias, e ter direito a folgar pelo menos uma semana e viajar para meu éden particular: a praia de Muriú. Ontem fui lá para ter uma prévia do que seria ficar de quarta a domingo naquele lugar maravilhoso, e eis que me dirigindo para a lagoa de águas mornas e deliciosas, levo uma queda monumental, e a vida me dá novamente o presente com que eu sonhei por anos: nova torção no pé, essa sim verdadeira e insuportavelmente dolorosa. Então me restou dar adeus às férias e, de pé enfaixado (num engessa não, dotô! Por favor!), refletir sobre o episódio e tentar tirar algo de bom dele.

Que eu posso dizer? Torcer o pé dói e isso é ruim mesmo. Agora os valores aparecem em seu devido lugar. O que antes me faria pular de alegria, ops, quer dizer, manquejar de alegria, agora me deixou no mínimo triste. Mas essa confusão entre dor e prazer, essa coisa de ver coisas ruins como meio de obter satisfação é mais comum que se possa imaginar. Chega uma hora que as coisas ruins são tão almejadas que chegam a nem parecer tão ruins assim. Na verdade as coisas ruins parecem ser muito boas, ao ponto de pessoas persegui-las e fazerem disso um modo de vida. Saberem que estão se auto-destruindo e ainda assim, vibrarem com cada mutilação que sofrem. O nosso mundo faz propaganda dessa busca pelo mal, como se fosse algo para pessoas livres e fortes. E é claro, as coisas ruins, embora destruam, dão prazer. Um prazer imediato e superficial, mas bom o bastante para mover toda uma vida. Mesmo tendo-se consciência da auto-imolação, persiste-se nela em busca de algum prazer, não importa a dor que se siga. Mas isso é livre arbítrio: escolher a vida ou escolher uma pequena morte todos os dias.

Agora alguém pode concluir que é mesmo um absurdo como as pessoas “do mundo” permitem-se sacrificar seus corpos e espíritos num estilo de vida epicurista, capaz até de buscar satisfação em coisas ruins. É, eu também não entendo, mas não gostaria de concluir meu pensamento antes de apontar para uma escultura. Uma das esculturas mais instigantes do período barroco: o êxtase de Santa Teresa, de Bernini. Santa Teresa descreveu o momento de sua vida em que um anjo lhe apareceu em sonho e atravessou-a com uma flecha. A santa afirmou que, nesse momento, sentiu um gozo profundo, acompanhado de uma dor tão forte que a fez desmaiar. O escultor Bernini materializou o fato narrado, criando uma obra em que pode-se perceber na face da Santa, uma expressão mista de êxtase e sofrimento.

Também no meio religioso, sempre houve a idéia de que o sacrifício e a dor conduzem ao prazer espiritual. E isso faz com que algumas pessoas vivam uma aparente vida cristã, que na verdade lhes é um peso dificílimo de carregar. Reprimem seus desejos movidos pela obediência às regras e pela necessidade de se flagelarem para se sentirem mais santos. Embora seja comovente ver como tantas pessoas suportam o estilo de vida cristão como verdadeiros mártires modernos, pessoalmente não creio que essa seja a forma mais eficiente de obter o favor divino. A graça de Deus é realmente gratuita, nenhum esforço nosso pode comprá-la. E Ele não se compraz que tentemos “negociar” nossa salvação com atos de sacrifício, porque o único sacrifício válido e capaz de nos libertar da culpa do pecado, foi o sacrifício de Jesus, já realizado há mais de dois mil anos, pelo que já não se faz mais necessário nenhum outro sacrifício humano.

A lógica da salvação não admite a dor como item imprescindível. Não somos salvos por “distribuir todos os nossos bens entre os pobres, e entregar o corpo para ser queimado” (I Cor. 13:3), mas pelo amor ao Salvador. E quando existe amor, não há sacrifício, há renúncia. A diferença é que as renúncias feitas em nome do amor não doem. Não são usadas como meio de negociar atenção, mas oferecidas alegremente como a mais perfumada dádiva. Não cobram algo em troca, simplesmente se dão, e a maior renúncia é oferecida como quem dá um beijo. Se não for assim, mesmo a religião, que a princípio é uma coisa boa, pode se tornar em algo ruim e destruidor, posto que pode se transformar em um conjunto de formas e rituais vazios, e apesar de toda nossa “dedicação”, por nós mesmos só conseguiremos nos perder ainda mais. Se a vida de um crente consiste em apenas cumprir regras para parecer irrepreensível, levar pesados fardos nas costas para parecer bondoso, e de vez em quando fazer sacrifícios para parecer piedoso, bem, ele não conseguirá salvar-se, mas certamente se tornará alguém amargo, frustrado e infeliz.

Há muitos que buscam prazer nos lugares errados, com a ilusão de que o prazer temporário que as coisas daqui oferecem é o que de melhor se abstrai nesta vida. Sua felicidade então depende de estímulos constantes, ininterruptos e novos para perdurar, e, efêmera que é, não resiste ao momento da dor, nem nunca chega a preencher por completo. As coisas ruins, no fim são sempre são ruins, não importa com que boas sensações elas possam nos seduzir. E fora do Espírito Santo, não há discernimento agudo o suficiente para escolher o que é realmente bom. Mas muito mais triste que viver de momentos de prazer seguidos de dores profundas, é viver toda uma vida de sacrifícios dolorosos, tristeza e amargura, mesmo morando numa casa à beira da fonte de todo amor. Em ambos os extremos, de perdidos dentro e fora da igreja, o conceito pequeno de felicidade é lamentável. Há sempre um desperdício da vida em abundância que Jesus veio nos dar. Há sempre uma falta generalizada do conhecimento de Deus. Aquele que vem da vivência tão íntima com as coisas do céu, que flua em alegria, transborde em amor ao próximo e, no momento da dor, perdure em paz. Há nessa vivência o encontro com uma dimensão de felicidade que não cabe dentro dos sentidos humanos: e isso é Graça, meu amigo, porque pelo sacrifício dEle, nós fomos elevados a bem mais que homens. Somos filhos de Deus. (Gálatas 3:26)

Uma semana iluminada e prazerosa,

Luciana

domingo, 15 de setembro de 2002

Como manda o figurino

Por esses dias eu terminei de montar um mural de fotografias no meu quarto. Foi uma idéia divertida, e selecionar as fotos foi um prazer à parte. Reencontrei muitas faces de mim mesma, e uma das que me traz saudades em particular, é a da menina de cabelos partidos no meio e vestidinho vermelho de babado. Eu amava esse vestido.

Minha mãe, por um bom tempo, era quem costurava as nossas roupas. E acompanhávamos passo-a-passo a confecção, desde o corte, quando ficávamos absortas como o modo como ela manejava aquela grande tesoura, até o acabamento, com as agulhas pregando botões e zíperes, provas e alfinetes. Gostávamos de pegar os retalhos que caíam da máquina e fazer roupas pra nossas bonecas. Bem, pareciam roupas aos nossos olhos.

Por isso, ganhar um vestido novo era uma festa que durava dias. Mas não sei bem porque, por aquele vestido vermelho eu me apaixonei particularmente. E o achava o vestido mais bonito que eu jamais usara, apesar de sua simplicidade. Eu queria estar com ele sempre que pudesse, em todos os lugares, eu e meu vestidinho vermelho - o grande caso de amor da minha infância.

Acontece que um dia lavaram meu vestido e eu fui para casa da minha tia sem levá-lo (a gente sempre levava uma “roupa de sair” para vestir à tarde, depois de tomar banho, para esperar os nossos pais). Se era para eu estar sem meu vestidinho vermelho, eu preferia não vestir roupa de sair.

À tarde minha tia sentenciou: “vamos para a pizzaria”. Aquilo em outra ocasião seria uma festa. Vi todos os meus primos e primas se arrumando alegremente, e eu fui ficando cada vez mais desesperada. Todo mundo iria menos eu? Olhei para minhas sandálias havaianas, e em seguida para o sapatinho de verniz da minha prima. Olhei para minha saia de bolinhas com um furinho do lado, e botei o dedo no furinho enquanto pensava. Era melhor não ir. Foi aí que minha tia fez a pior coisa que uma tia poderia fazer com uma criança de oito anos. Ela me obrigou a ir também. “Mas assim, como eu tou?”. Exatamente, “deixe de besteira e venha, que você não vai ficar aí sozinha”.

Desci do carro de minha tia reparando em como todo mundo estava super bem vestido – naquela época pizzaria ainda era novidade aqui em Natal: era ristoranti italini . Quando entrei naquele prédio assustador com meus primos, uma menina de vestido belíssimo e sandália branca brilhante vinha saindo com os pais. Nunca esqueci o olhar da menina em minha direção. Ela arregalou bem os olhos, olhou de cima a baixo e piscou forte. Eu baixei a cabeça e acho que não vi mais nada a noite toda. Passei todo o restante do tempo com o dedo enfiado no buraco da minha saia e tentando manter meus pés bem escondidos embaixo da mesa. Nem sei se comi pizza, e se comi não acho que tenha tido algum gosto. Lembro vagamente das risadas de meus primos se divertindo enquanto eu olhava a toalha da mesa, que era vermelha, e me fazia pensar no meu vestidinho pendurado no varal...

Ai, deu até vontade de chorar lembrando disso de novo, chuinf. Talvez por causa desse episódio lamentável eu sempre tenha sentido um nó na garganta quando leio o capítulo 22 de Mateus. Sei exatamente como é a sensação de estar numa festa com o traje equivocado. De ter a roupa ideal para ser usada mas estar sem ela quando se mais precisa. Ah, sei como é desagradável!

Somos chamados a participar de um banquete, onde a verdade e o amor são os pratos principais. E a roupa para estar nessa festa já foi preparada por Jesus, com o carinho de uma mãe que veste os filhos. Essa roupa é o manto de justiça que nos torna dignos de estar na presença do Pai. Foi um cordeiro que, no Éden, foi sacrificado para que sua pele pudesse cobrir o pecado de Adão. Foi também um cordeiro, o Cordeiro de Deus, que foi sacrificado na cruz para que nós pudéssemos cobrir nossa nudez de virtudes, com a Sua graça redentora. “Aconselho-te que de mim compres... vestiduras brancas para te vestires, a fim de que não seja manifesta a vergonha da tua nudez.” Apocalipse 3: 18.

Essa veste que está preparada para nós sob medida, não é uma capa que se usa aos sábados pela manhã e depois do culto se pendura dentro do armário. Temos de nos manter vestidos com ela o tempo todo, para que Ele não nos apanhe em nossos trajes pobres de justiça e esburacados pelo pecado. Cristo já fez Sua parte: preparou nosso traje. Mas... e nós? Estamos usando a veste que Ele nos preparou, tecida com Seu sofrimento, costurada com Seu amor e tingida com seu próprio sangue? Ou preferimos usar nossos trapos, que não obstante nos darem a sensação de eles somente bastam, não escondem nossa verdadeira condição miserável, pobre, cega e nua? Não faz sentido que estejamos pobremente vestidos: Deus convida que nossa igreja lavar as vestes no sangue do cordeiro (Apocalipse 22:14). Só assim podemos nos apresentar dignamente perante Ele.

Sem meu vestidinho vermelho, não teve a menor graça participar do banquete na pizzaria. Se nossas vestes de cristãos – tudo que dizemos, fazemos, pensamos e representamos – não passarem pelo vermelho justificador do sangue de Cristo, o banquete que Ele tem preparado para nós também não terá nenhum sabor.

Uma semana iluminada,

Luciana

domingo, 8 de setembro de 2002

Uma lista para você

Todo mundo já recebeu uma, eu recebi outra esta semana. Listinhas de internet. Elas trazem de tudo, desde correntes de assinatura para proibir a caça de pardais até centenas de motivos porque um frango atravessou a rua. A lista que recebi não tinha um tema específico, mas de alguma forma falou algumas coisas que eu não poderia deixar de comentar. Entre elas:

1. A verdadeira felicidade está nas pequenas coisas...um pequeno iate, um pequeno Rolex, uma pequena mansão, uma pequena fortuna...

2. O importante não é ganhar. O que importa é competir sem perder nem empatar.

3. Ter a consciência limpa é ter a memória fraca.

4. Há um mundo bem melhor... só que é caríssimo.

5. Se procuras uma mão disposta a te ajudar, tu a encontrarás no final do teu braço.

6. Se tu és capaz de sorrir quando tudo deu errado, é porque tu já descobriste em quem pôr a culpa.

Se eu não estivesse estressada até a medula dos ossos com as provas de fim de semestre na faculdade, eu até me limitaria a rir e deixar pra lá. Mas sabe como é: estresse + TPM + esgotamento intelectual = filosofia! E junte-se a isso que ando meio irritada com essa total inversão de valores que vem sendo ironizada por aí. Por isso elaborei também minha lista, que não pretende ser engraçada nem tão profunda, mas tenta reescrever umas definições básicas que andamos esquecendo...

- Primeiro pressuposto: voltemos à definição de coisas e pessoas. Vejamos o Aurélio:
Coisas – S. f. pl. 1. Bens, propriedades, valores.
Pessoas – S. f. pl. [do lat. Persona] 1. Homem ou mulher.
Um verbete a mais, só para lembrar: coisas são para usar, pessoas são para amar. Não o contrário.

- Deveríamos dedicar mais tempo para pessoas e não para coisas; coisas são adiáveis, pessoas não. Você pode recuperar a maioria das coisas que perde. Mas o momento agora de amar as pessoas, não se recupera jamais.

- Coisas te proporcionam realização, mas só pessoas te dão satisfação. Dói no coração ver tanta gente “realizada”, culta, rica, famosa, e... insatisfeita. De que adianta realizar cada uma de nossas ambições, se ao final tudo continua sendo vazio e solidão? É muito bom conquistar coisas. Melhor ainda é partilhar isso com pessoas. Pessoas que amem quem realmente está por trás de todas as “grandes” coisas que conquistamos, e que tenham braços capazes de abraçar a “enormidade” daquilo que nos tornamos...

- Quanto tempo se gasta querendo-se achar o culpado! E depois que se acha, gasta-se mais tempo ainda encontrando-se um modo de castigá-lo, ferí-lo e condená-lo, para que se lembre bem, eternamente, do quão culpado é. Enquanto isso, em Gothan City, o problema continua sem solução... coisas têm conserto, podem até ser substituídas. Pessoas são insubstituíveis. E quando têm o coração partido, este pode não se consertar jamais.

- Ajudar é bom. Não estou falando de fazer o possível (leia-se confortável), só para parecer bonzinho – até os maus fazem isso. Não estou falando de abraçar velhinhos para ganhar a eleição. Nem muito menos de fazer uma caridade para "herdar o Reino dos Céus". Estou falando de ajudar, fazer o bem porque, oras, fazer o bem é bom. Sem nada em troca, apenas por ajudar. Porque investir em pessoas é infinitamente mais gratificante que investir em coisas. Puxa, alguém lembra o quanto isso é bom? Sabe aquele calorzinho no coração, aquela alegria secreta de ver alguém feliz sem precisar expor os próprios feitos no outdoor? Aquela sensação única de fazer algo realmente importante para alguém, sem querer absolutamente nada em troca? Ainda tenho esperança de contar a meus netos que dinossauros, araras azuis e esse tipo de ajuda desinteressada já existiram na Terra, de verdade.

Neste início de semana, faça você também a sua lista. Mas não esqueça de colocar no topo dela, as prioridades certas.

Uma semana iluminada,

Luciana

sábado, 31 de agosto de 2002

Quando as coisas começam a mudar

Sábado passado tivemos, como de costume, a reunião do GEA (Grupo de Estudantes Adventistas) da Igreja do Alecrim. Todos estávamos visivelmente tristes, devido à perda de dois membros muito queridos, que por motivos pessoais se afastaram do nosso convívio. Ambos acrescentavam muito em alegria e motivação, e ora, uma perda é sempre uma perda, é sempre triste, e deixa aquela sensação de membro amputado que continua a doer. Ao contrário de todas as semanas, começamos a reunião sem cantar, porque um dos membros que saíram foi justamente aquele que tocava o violão para animar o louvor. Cantar sem ele ali, significava evocar de forma mais sofrida sua ausência. Então fomos logo para a sessão de pedidos, agradecimentos e testemunhos.

Depois de seguidos “agradeço a Deus pela vida”, com um semblante triste tornando o agradecimento meio paradoxal, e depois de alguns pedidos de oração em torno sempre de nossas perdas, um dos membros mais tímidos, que geralmente nada pede, agradece ou testemunha, disse que queria falar. Todos os olhares surpresos dirigiram-se para Regineide, que ainda mais intimidada começou a narrar um dos testemunhos mais poderosos que eu já ouvi nos últimos tempos.

Regineide faz geologia no CEFET daqui de Natal, e é comum eles saírem para pesquisas de campo. Na sexta-feira sua turma fez uma dessas viagens, mas o que deveria ser só mais uma viagem para estudos, logo se tornou uma prova angustiante. Depois que o grupo realizou suas atividades rotineiras, um dos amigos de Regineide contou algo no mínimo perturbador. Ele disse que há algum tempo atrás, sonhara com essa viagem, e que tudo estava acontecendo exatamente como no sonho: os componentes do grupo, as atividades realizadas, os lugares, tudo com detalhes estava seguindo o mesmo rumo do seu sonho. Mas um detalhe que o estava incomodando muito, é que no sonho, enquanto eles voltavam, acontecia um grave acidente com o ônibus, e nesse acidente Regineide morria. Fantasia? Profecia? Coincidência? Brincadeira de mal gosto? O fato é que ninguém queria mais deixar Regineide voltar. É provável que o relato do colega dela tenha sido bastante convincente, porque até mesmo os professores começaram a inventar mil motivos para eles viajarem só no outro dia.

Porém era sexta-feira, e Regineide tinha um compromisso inadiável com Deus no sábado. “Mas aqui nós vamos passear, ver coisas da natureza, você não vai precisar fazer nenhum trabalho...”. Regineide estava decidida: ela queria estar na Igreja. “Mas é apenas uma noite, você vai amanhã cedo”. Regineide subiu no ônibus, preparada para voltar. Pode ser que na hora ela tenha dito que aquilo era só uma coincidência, que ninguém podia se guiar por sonhos, e talvez até tenha feito algumas brincadeiras em torno do assunto. Eu faria isso. Talvez você também. A maioria das pessoas aprende, ainda criança, que a melhor maneira de espantar o medo do desconhecido é chamá-lo de misticismo e tratá-lo como um fantasia da imaginação humana. Mas a gente sempre esbarra com algo na Bíblia parecido com “pois não é contra carne e sangue que temos que lutar, mas sim contra os principados, contra as potestades, conta os príncipes do mundo destas trevas, contra as hostes espirituais da iniqüidade nas regiões celestes.” Efésios 6:12. Acho que Regineide teve muita fé em entrar naquele ônibus, e pensando bem, eu não conseguiria fazê-lo sem ao menos um leve tremor nas pernas.

Durante a viagem, de fato, ocorreu um grave acidente na estrada. Mas não com o ônibus em que Regineide ia com seu grupo. Este chegou a Natal são e salvo, sem nenhum arranhão. Comentando então sobre o “destino” diferente do sonho, o colega dela falou o seguinte: “Mas tudo ia mesmo, exatamente como no sonho, até a hora do pôr-do-sol. No meu sonho, você ia triste, sentada na cadeira com um ar desconsolado. As coisas na realidade começaram a ficar diferentes, quando você se levantou da cadeira e começou a cantar para gente as músicas que você costuma cantar no culto de pôr-do-sol da sua igreja. Daí em diante, tudo mudou, e como você vê, nada mais aconteceu segundo o que eu tinha sonhado!”. Nós todos do GEA estávamos emocionados com o testemunho dela, que nesse ponto também já não conseguia falar, com a voz embargada pelo choro contido. Nesse sábado, como todos os demais, nós terminamos cantando. E não obstante a tristeza pela ausência de dois dos nossos membros, terminamos cantando forte, com fé e poder.

Não é curioso como louvar a Deus parece combinar apenas com um coração alegre e exultante? Sim, sem dúvida é maravilhoso louvar a Deus assim, mas o louvor é também para quem está fraco, ansioso, derrotado, tentado e triste. Diria mais: o louvor é especialmente para quem está assim! Mas sejamos francos. É claro que na prática louvar a Deus quando as coisas vão mal é como seguir aquele bom hábito de beber muita água logo ao acordar e depois tomar um café da manhã bem generoso: espontaneamente não dá mesmo! Temos que ter uma boa motivação, ou do contrário nosso esforço não terá sentido.

Eu poderia citar uma porção de bons motivos para você louvar a Deus em todas as ocasiões, mesmo nas tristes. Mas a sua motivação tem que partir daí de dentro, de um genuíno desejo de agradecer a Ele, mesmo quando tudo leva a crer que sua derrota é certa. Isso significa: fé, que implica em poder para fazer as coisas mudarem. No caso de Israel em II Crônicas 20, a motivação era um exército inimigo bem a sua frente, em número assombrosamente maior, pronto a massacrá-los, cortá-los em pedacinhos, queimá-los e jogar as cinzas no rio Ganges. Estranhamente, o pequeno exército de Israel guardou suas espadas e pôs a sua frente um grupo de cantores dizendo: “Rendei graças ao Senhor, porque a sua misericórdia dura para sempre.” (II Cron. 20:20). Consegue se imaginar no lugar deles? Se já houve pessoas de fé na Bíblia, essas pessoas cantavam. Repare que, além de caminhar para um destino perigoso e temível, eles ainda tiveram que subir um monte, sem poder ver que, do outro lado, os próprios inimigos matavam-se uns aos outros. Sempre agradecendo, eles caminhavam sem ter noção do que os aguardava. E ao chegarem no alto do monte, não havia mais nenhum inimigo sobrevivente.

O recado é claro: louve ao Senhor com um coração agradecido.. Mesmo que o destino pareça amedrontador, é louvando que você demonstra fé em que Ele está agindo. E Ele está. Mesmo que, na subida do monte, você não consiga ver como Ele está fazendo isso. Há Alguém que vai muito à frente no teu caminho, preparando tudo para que você alcance a vitória. O que você tem que fazer, então, é louvar. E se a vida está em ruínas, se seus sonhos se frustraram, se suas conquistas foram tragadas, louve ainda mais forte, como se sua alma mesmo fosse um canto de louvor. Sua tarefa é continuar caminhando, e cantar com tanta fé que nem sinta seus pés doerem tanto. Os pés dEle doeram mais quando foram pregados na cruz.

Deus está entronizado nos louvores do seu povo (Salmo 22:3). É aí que Ele mora, então se quer encontrá-lo, não há melhor maneira que buscá-lo em adoração. Experimente, ao invés de parar no meio do caminho ou fugir pela tangente, continuar caminhando mesmo em meio ao vale da sombra da morte. Enquanto caminha, tente agradecer a Ele, mesmo que não tenha restado nenhum motivo a não ser a fé de que Ele vai à sua frente. Faça isso e sinta quanto poder é liberado quando você desvia seus olhos do objeto de seu medo, para o Objeto de sua fé. Meu querido amigo, acredite, é quando louvamos que as coisas realmente começam a mudar... e não seguem mais o curso daquilo que julgamos “o mais provável”, mas fluem de acordo com a realidade do amor dEle por nós. Confie um pouco mais! Habite com Ele no louvor. Começo, então, eu mesma, pedindo isso...

Comigo habita, ó Deus, a noite vem!
As trevas descem, eis, Senhor, convém
Que me socorra a Tua proteção!
Oh, vem fazer comigo habitação!

Vem revelar-Te a mim, Jesus, Senhor,
Divino Mestre, Rei, Consolador!
Meu Guia forte, amparo em tentação!
Oh, vem fazer comigo habitação!

Breve, Senhor, terei meu fim mortal;
É tão fugaz a vida terreal!
Tem tudo aqui mudança e corrupção,
Oh, vem fazer comigo habitação!

Se eu estiver nas trevas ou na luz,
Não há perigo, andando com Jesus;
A morte e a tumba não aterrarão!
Oh, vem fazer comigo habitação!

(Comigo Habita [Abide with me], hino 397 do Hinário Adventista do Sétimo Dia)

Uma semana iluminada,
Luciana

sábado, 24 de agosto de 2002

Decifre pessoas (e economize R$ 35)

O fenômeno aconteceu quando uma das estagiárias chegou com um livrinho verde embaixo do braço e o colocou na estante onde guardamos nosso material. Todo mundo que chegava e saía via o livro lá, verdinho, e por algum motivo, irresistivelmente magnético. Na mesma semana, já havia fila de espera para pegar o livro emprestado, todo mundo que o via queria ler. A explicação para tamanha atração estava no título: “Decifrar pessoas”. O livro de Jo-Ellan Dimitrius e Mark Mazzarella é um pequeno manual que ensina a descobrir as características das pessoas através da observação de seu comportamento, tom da voz, aparência (inclusive o corte de cabelo), entre outras “dicas” aprendidas em experiências práticas que a autora vivenciou acompanhando mais de seiscentos processos judiciais nos Estados Unidos.

Eu, que desde sempre me considero uma observadora apaixonada do ser humano, consegui furar a fila e dar uma folheada no livro. Não descobri ali nenhuma fórmula mágica, apenas alguns itens óbvios a serem analisados quando se quer, de fato, conhecer alguém. Se estou interessada em saber quem é Mauro Maurício, é normal que eu repare no modo como ele veste, fala e se comporta. Se ele dá uma gargalhada está alegre, se chora, está triste ou comovido. Se usa sempre terno preto, não acho que ele seja um indivíduo espalhafatoso, se engraxa os sapatos, é cuidadoso, e se sabe combinar bem as camisas com as gravatas e meias, adivinhe? Ele tem uma ótima esposa! Ao contrário do que o título do livro sugere, não há nenhum segredo para decifrar pessoas: trata-se da antiga arte de observar, aliada a um pouco de sensibilidade.

O que me chamou atenção mesmo, não foram as “dicas” da autora, mas a forma como o livro causou um interesse repentino nas pessoas. Parece que todos estão querendo urgentemente entender seu semelhante. Conviver tornou-se um jogo de individualismos, e desconhecemos cada vez menos as pessoas com quem lidamos. Os adolescentes passam um terço da vida se sentindo incompreendidos, e quando crescem é a vez deles não compreenderem. Os homens espalham aos quatro ventos que “ninguém entende as mulheres”, e as mulheres respondem que “quanto mais conhecem os homens, mais admiram os cachorros”. Depois homens e mulheres fazem uma trégua e têm filhos que, quando forem adolescentes, escreverão em seus diários: “ninguém me compreende!”. Tornamo-nos cada vez mais indecifráveis! O resultado disso é a deterioração dos relacionamentos, tão notória em nossos dias.

*Ai que vontade de comer feijão*

Ninguém pode negar que esse é um dos maiores problemas do século XXI: relações superficiais e pouco duradouras. Nos acostumamos a fast food, drive-in, instant mensseger, e também a relacionamentos práticos e rapidinhos (ainda vão inventar um nome em inglês pra isso). Nada muito envolvente (envolvimento dá trabalho), nada muito profundo (profundidade exige diálogo e tempo – que não temos), nada muito grande (para sempre é tempo demais a se investir numa pessoa).

Mas assim como acontece com as comidas congeladas, perdemos muito em sentir o sabor de algo realmente gostoso num relacionamento “enlatado”, tipo agite e use. Pode ser que um dia todos comam gelatinas verdes super-nutritivas e insípidas, como aquelas que os astronautas levam para o espaço. Nesse dia as pessoas poderão até ter aprendido a viver sozinhas e sem Deus. Mas eu, no alto dos meus noventa anos, vou continuar comprando feijão no mercado negro.

Talvez você também já tenha cansado de gelatina verde sem sabor. Quando me pergunto: “Por que estamos assim?”, nunca consigo ouvir como resposta um “porque queremos”. Essa distância entre nós mesmos, essa falta de entendimento entre pais, filhos, cônjuges, colegas de trabalho e torcedores de times rivais, essa incompreensão não parece ser uma opção que nos agrade. Ela é muito mais fruto de nossos medos e inseguranças. O resultado de nossas defesas, e a fantasia tola de achar que não se entregar dói menos que não ser feliz.

Nosso medo de não sermos aceitos é o que nos faz ceder a uma vida frustrante, e até se adaptar a ela como se isso fosse exatamente a coisa certa a fazer. Embora você sinta lá dentro, sobre o travesseiro onde você põe a cabeça todas as noites, uma vontade imensa de comer feijão.

Tornamos nossos relacionamentos mais confortáveis fazendo com que ele não mexam tanto conosco. Não nos incomodem a ponto de transformar o que somos. Homens, mulheres, temos medo. E um deles, é sermos descobertos e não aceitos. De sermos desmascarados e por isso, não mais amados. Relacionar-se plenamente custaria ter que se abrir e mostrar-se por inteiro, deixar-se observar, deixar-se decifrar, e isso nos faz tremer os joelhos. Nossa máscara é bem mais confortável. E um relacionamento superficial, se por um lado não nos satisfaz, por outro lado, não provoca sentimentos e reações que fujam ao nosso controle. Relacionamentos rapidinhos, descartáveis ou bocejantemente superficiais não borram a maquiagem. Nos contentamos em ser aceitos por aquilo que não somos... E suportamos o tédio, porque fugimos da perspectiva de dor. Embora não esqueçamos o gosto do feijão, até mesmo daquele que nunca provamos.

Esse apetite por ser inteiro não é em nada errado, é apenas a confissão da nossa humanidade: Deus nos fez para sermos felizes, plenos, não para sermos seres se escondendo.

*Baile de máscaras*

Esse é enfim o primeiro grande problema que nos fez distantes um do outro: o medo de sermos quem somos realmente. Há pessoas tão especializadas em ser o que os outros querem, que se lhe tirassem os paradigmas de beleza, poder e status, elas perderiam o motivo de viver: não saberiam quem são! Morreriam por acreditar que ninguém as amaria se elas não fossem exatamente como manda o modelo. Mas a tragédia de quem vive assim, é enxergar que nenhum de nós se encaixa perfeitamente em modelo nenhum. Sempre nos deparamos com falhas. E as escondemos. Todos nós.

Agora pense: Como as pessoas podem se entender, se elas não mostram ao outro quem são? Como podemos nos compreender se vivemos fugindo uns dos outros? Como decifrar pessoas num mundo onde as pessoas não se permitem decifrar? A resposta para o primeiro grande problema é lançar fora o medo. Se é tão difícil sermos amados pelo que somos de verdade, uma coisa é certa: essa é a única maneira de ser amado. Se você precisa usar uma máscara para ser aceito, a verdade é que sua máscara é amada e não você. E máscaras, amigo, existem às milhares. Você é único. E atrás dessa maquiagem, talvez esteja desperdiçando uma chance única de ser amado de verdade.

O segundo grande problema da nossa distância universal é que, acostumados que ficamos a esse baile de máscaras, já perdemos há muito o hábito de observar as pessoas. Ora, mas se todas parecem tão iguais! Como num desfile de moda. As pequenas variações de cor da pele e cabelo nas modelos que desfilam, não consegue tirar a impressão de uniformidade que elas formam, como se fossem todas o mesmo ser fabricado em série. Infelizmente essa busca pelo padrão universal não fica só nas passarelas. Já não nos preocupamos em sermos apenas, mas em sermos “daquele jeito”. Se dermos uma olhada ao redor veremos que Deus ama a diversidade, e pôs no mundo criaturas tão diferentes por um só motivo: a beleza também está na diferença, no contraste, na assimetria. Mas agora todo mundo se esforça para ser igual, usando o mesmo padrão global de ser humano perfeito... (ops! Plim, plim).

*Labirintos fascinantes*

Assim fica mais difícil conhecer as pessoas. Elas ficam parecendo uma grande massa de iguais. Mas eu acredito que ainda é possível ver algo especial se nos esforçarmos para ver além. Só temos que recuperar o gosto por observar. Reparar detalhes. Ou no caso dos homens, pelo menos tentar. O melhor modo de decifrar as pessoas ainda é contemplando-as. É incrível como, olhando para nosso semelhante, aprendemos muito sobre nós mesmos. Crescemos sobremaneira saindo do nosso próprio mundinho para ver a beleza particular de cada pessoa. E também seus defeitos, manias, necessidades. Veremos algumas coisas tristes, outras que nos causarão repulsa. Mas sempre haveremos de crescer. Veremos que a verdade não pertence somente ao nosso conjunto de frases feitas. Há um pouco mais de verdade no olhar de cada pessoa que nos cerca. Mas a gente tem que chegar lá, bem perto, para ver.

A resposta para o segundo grande problema é termos coragem para nos aproximar. Observar detidamente, com o mínimo de preconceito possível, e tentar apreender a profundidade, mesmo a não nítida, ou a de difícil acesso. Decifrar pessoas pode ser como entrar num labirinto, em que, à medida que você vai se aproximando do centro, as paredes vão ficando mais estreitas e salientes, com pontas agudas em que você poderá se machucar. Mas se conseguir chegar ao centro, terá uma visão tão bela que te impressionará a ponto de fazer você não querer mais sair dali. O centro do labirinto pode guardar o lugar onde você nasceu para ficar.

Quero crer que haveremos sempre de encontrar algo para observar além da máscara alheia. Algo que nos diz respeito, que vai mexer com nossas vidas (oh, não... não tem outra maneira mesmo!), e vai exigir de nós mesmos, atitudes de ser humano para ser humano, não mais de ser humano para objeto. Reaprendendo a observar pessoas, conseguiremos ser mais humanos, nem que isso parta do encontro de vazio com vazio.

*Descansando o olhar*

Para decifrar pessoas não basta querer saber os segredos de invadir. Tem que se ter consciência que, conhecer é também ser invadido, e que por isso exige muito mais do que a maioria de nós se sente capaz de dar. Mas o fato de eu estar dizendo tudo isso, é porque acredito que ainda somos capazes. Deus nos fez assim! Não nascemos para nada abaixo da plenitude. Se acostumar ao superficial é o que de pior podemos fazer a nós mesmos. Relacionamentos sólidos e profundos demandam grande energia e investimento, mas valem a pena. Fazem-nos conhecer não só as pessoas, mas a sensação ímpar de sermos satisfeitos em todos os níveis do ser, a alegria sublime de amar e sermos completamente amados. Lembra? Sabe o que é isso?

Neste início de semana, pense se já não é hora de rever seu modo de olhar e ser olhado. Peça a Deus o dom de observar, e a coragem de ser exatamente quem é. Pode ser que seus olhos às vezes fiquem cansados, ao ver tantas paisagens tristes, tantos lugares áridos onde a pupila não possa descansar. E ainda pode ser que, sendo quem você é, você perca algumas coisas, até algumas pessoas que não queiram o que há por detrás da sua máscara (não que você não seja especial, é que nem todo mundo aprecia Miró ou Van Gogh). Mas esteja certo que Cristo sempre te olhará com amor leal. E nEle você sempre achará lugar para contemplar e sorrir.

Uma semana iluminada,

Luciana

sábado, 17 de agosto de 2002

Montanhas

Você conhece, é um dos chavões cristãos mais propalados: “a fé remove montanhas”. A base bíblica para essa afirmação está em Marcos 11: 23, onde Jesus afirma: “Em verdade vos digo que qualquer que disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar; e não duvidar em seu coração, mas crer que se fará aquilo que diz, assim lhe será feito.” Descobri um novo sentido para essa crença, e gostaria de partilhar com vocês.

Semana passada minha mãe dirigiu-se até uma clínica para fazer exames de rotina, entre os quais estava incluída uma mamografia. Ela foi sem medo. Aos cinqüenta e um anos, nunca foi constatado nada de irregular. Na sala de espera, ela observava constrangida o desespero de outras mulheres. Uma delas estava voltando para fazer novo exame, porque o médico havia descoberto um nódulo suspeito em seu seio. E isso, para aquela mulher, significava algo de muito errado. Um câncer talvez. Por isso ela chorava e chorava, enquanto outra mulher tentava consolá-la. A última dizia à primeira:

- Tenha calma, as coisas não são tão trágicas assim. Veja o meu exemplo. Há alguns anos eu fiz um exame e os médicos encontraram um enorme nódulo no meu seio. Como era maligno, precisou ser retirado com urgência. Mas eu tive fé, e orei pedindo a Jesus que me curasse. Até aquele momento eu não conhecia o poder de Deus. Era uma mulher rica, bonita, realizada, bem casada, nunca havia precisado da ajuda de Deus. Mas quando precisei, Ele me atendeu, e antes de fazer a cirurgia, os médicos fizeram um novo exame onde constataram o desaparecimento inexplicável do nódulo.

Minha mãe ficou impressionada com o relato da mulher. Solidária a ela, e na intenção de reforçar seu testemunho, disse apenas:

- É, eu também conheço esse Deus vivo que te curou!

Fez o exame e foi embora. Na mesma semana, minha mãe descobriu que o exame acusou não só um, mas vários nódulos nos seus dois seios. Foi chamada para fazer novo exame, mais minucioso, e teve que enfrentar novamente a sala de espera, sem ninguém para consolá-la e com um medo terrível no coração. Na mente, a sua afirmação dita tão convictamente alguns dias atrás, parecia acusar-lhe: “Você realmente conhece esse Deus vivo? Então chegou a sua vez de ter fé.”

É tão fácil declararmos nossa fé quando nada nos atinge. Mas quando chega a hora de sermos provados? Até onde nossa fé sobrepuja o medo, a ansiedade, a dúvida? Minha mãe passou a semana orando. Nunca a vi tão temerosa. Falava sem parar no assunto, e seu semblante ficou visivelmente abatido. Descobri que nessas ocasiões, é até melhor não conversar sobre o assunto com outras mulheres, já que todas têm sempre uma experiência horrível e traumatizante para contar...

Um dia antes de ir ao médico fazer a biópsia, minha mãe apontava para o exame de ressonância magnética e dizia: “Veja só, Luciana. Um dos nódulos é enorme, há outros grandes também. Estou preparada para chegar lá amanhã e ter de ficar internada para uma cirurgia...” O nódulo maior tinha pouco mais de dois centímetros, mas na perspectiva dela aquilo era imenso. Tentávamos tranqüiliza-la dizendo que não era nada demais, que ela não podia antever nenhum diagnóstico. Mas foi Deus quem a fez ir ao exame pensado: “Eu, porém, confiarei no Senhor; esperarei no Deus da minha salvação. O meu Deus me ouvirá.” (Miquéias 7: 7)

Felizmente ao chegar no médico, este descobriu que a situação era mais simples do que ela imaginava. Os nódulos “enormes”, foram retirados rapidamente, através de uma pulsão, um procedimento relativamente simples, que usa apenas uma agulha para “esvaziar” os nódulos. Em seguida ela voltou para casa, e quando fui conversar com ela para saber como tudo havia se passado, ouvi exatamente essas palavras:

- Eu disse que tinha fé. Os nódulos foram minhas “montanhas”. Eu os via enormes, intransponíveis... mas Deus, em Seu amor, as transformou em montículos de barro. E eu aprendi como minha fé pode remover montanhas.

Qual é a sua montanha pessoal? Não importa que homens no passado tenham curado, ressuscitado, feito fogo descer do céu. Quando você se vê diante da sua montanha, é somente a sua fé que pode removê-la. Você realmente acredita nisso? Conhece verdadeiramente o Seu Deus? Ou apensa as histórias que te foram contadas, e pareceram sempre tão distantes? Milagre não é fazer um nódulo desaparecer, um câncer ser curado, um cego tornar a ver ou uma montanha lançar-se ao mar. Isso tudo é muito simples para Deus, muito pequeno. Milagre, é fazer você ver as coisas com o olhar dEle. Sem medo, sem desespero, com a certeza de que todas as coisas contribuem para o bem daquele que O amam. É abrir seus olhos, de modo que, conhecendo realmente por Quem você é amado, seus olhos se abram para uma realidade muito além do cume das montanhas. O milagre que Deus mais anseia realizar, o mais difícil, meu amigo, é fazer você crer. De todo o seu coração, vontade e entendimento. Quando conseguirmos ser curados espiritualmente da nossa pouca fé, nenhuma montanha nos parecerá ameaçadora. Porque Ele nos elevará acima das maiores alturas, para vermos muito mais que os simples temores humanos. “Os teus olhos verão o Rei na sua formosura, e verão a Terra que se estende em amplidão.” Isaías 33: 17

Que nesta nova semana, você receba o maior milagre de todos: saber em quem tem crido. (II Tim. 1:12)

Uma semana iluminada!

Luciana

sábado, 3 de agosto de 2002

O céu por um real

A cena era comovente. Meio-dia, a senhora indiferente, e ela explicando com voz de choro:

- Não, minha senhora, deixe eu ser clara... eu te-nho-que participar desse evento, entendeu?

- Senhorita, o que eu entendi bem é que você não fez a matrícula na semana passada, portanto não-po-de-ma-is participar desse evento. Não há mais vagas. Sinto muito.

- Não, a senhora não tem idéia do que eu sinto. Se eu perder a oportunidade de fazer um desses cursos de música barroca, eu posso ter um colapso nervoso. A senhora gostaria de abrir o jornal e ver que uma garota morreu de colapso nervoso porque não abriram uma vaga para ela? Meus pais poderiam processar a senhora - ameaçou a garota, insopitável.

- Pois bem, que processem - falou a senhora secamente, terminando de organizar uns papéis em cima da mesa.

- Olha - ela respirou fundo - desculpe, eu estou nervosa. Não quis ser grosseira. Sabe, eu amo música barroca. Sou completamente, perdidamente, doidamente apaixonada por música barroca. E aqui em Natal, nunca aconteceu um evento desse porte, especialmente voltado para esse tipo de música, e com professores de alta qualidade. Então, eu não posso ficar de fora se não nunca vou me recuperar desse trauma...

- Senhorita, se você ama tanto música barroca, por que não fez a inscrição semana passada?

- Mas eu já lhe disse! Eu não sabia que as inscrições eram até semana passada. Vi a propaganda, mas não reparei nas letras minúsculas que diziam o prazo de inscrição. Ontem eu vim aqui pensando ser uma das primeiras da fila, mas quando cheguei me informaram dessa catástrofe. Então resolvi vir aqui novamente, suplicar, implorar, pedir de joelhos se for o caso, para a senhora deixar eu participar.

- Não posso.

- Eu não acredito! Minha senhora, tudo bem, eu entenderia se a inscrição fosse de um valor maior, mas é apenas um real!! Um real!! Que diferença faz matricular alguém depois?? É apenas uma vaga a mais, ninguém vai reparar!

- De fato, esse valor é apenas simbólico. Não paga nem o lanche dos professores. Mas foi instituído para que os alunos se sentissem vinculados à responsabilidade de comparecer ao curso. Pagando essa taxa, eles demonstraram interesse real pelas matérias, o que a senhorita não fez.

- Mas... mas...

- Tenho que ir almoçar, com licença.

- Ouça-me, eu pago mais - dizia ela enquanto segurava o braço da senhora, que saía a passos largos em direção à porta - pago cinco reais, pago dez. Pago vinte, a senhora pode ficar com o restante. Espere um pouco!

- Por favor, me solte, se não eu chamo o segurança.

- Eu pago cinqüenta, cem reais... tá bom, eu pago duzentos, meu salário todinho!

A senhora parou, olhou a garota de cima a baixo e não pareceu nem um pouco sensibilizada com a quantia vultosa do suborno. Antes, a fulminou com um olhar que a fez ficar parada, sem reação. Depois continuou andando em direção a seu carro.

A garota começou a chorar. Estava desesperada e fazia questão de demostrar isso. Logo que se deu conta que sua última oportunidade de fazer o curso de música barroca estava indo embora, retomou os movimentos e correu em direção ao carro.

- Minha senhora, eu lhe imploro - ela soluçava - se a senhora não fizer minha matrícula eu vou acampar aqui na frente do Palácio da Cultura, e vou cantar todo o repertório de música barroca e renascentista que eu conheço, até alguém se sensibilizar com minha situação, ou até eu perder a voz!

- Faça um bom aquecimento vocal antes, disse a senhora dando partida no carro.

- Não, não vá embora... por favor...

Mas o carro já ia embora. A garota foi atrás, a princípio tentando segurar o carro, depois andando rápido, depois correndo com os sapatos altos nas mãos, jogando súplicas ao vento. Uma cena deplorável, coisa que ela só se deu conta depois que notou todo mundo da praça a olhando.

De alguma forma, esse episódio me fez pensar de novo em Deus, e no modo como se opera a nossa salvação. Quanto custa ser salvo? O apóstolo Paulo responde: "sendo justificados gratuitamente pela sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus" (Romanos 3: 24); "para o louvor da glória da sua graça, a qual nos deu gratuitamente no Amado" (Efésios 1:6).

A salvação é gratuita, decorre da graça de Deus. Mas há algo que precisamos fazer, e é condição sine qua non para sermos salvos. Consiste em aceitarmos isso. Deixar que a salvação concedida gratuitamente por Cristo faça parte de nossa vida, demonstrar interesse para que ela se opere. Se me permitem a comparação, seria como dar um real a Deus e em troca receber toda as promessas celestiais que Ele tem para nós. Mas um real? É, não se engane se quiserem vender um terreno no Céu mais caro. Deus realmente não precisa de nosso dinheiro, nem do nosso um real (que é quase dinheiro), mas Ele precisa que demonstremos interesse pelo Seu maior presente. Afinal, não adianta Ele querer nos dar um Céu junto com Jesus , se o Céu junto com Jesus não está entre o que mais queremos.

E como demonstramos nosso interesse? Bem, como Deus ainda não abriu uma conta bancária aqui na Terra, Ele instituiu outra "moeda" simbólica: o nosso coração. Dando o nosso coração a Jesus, demonstramos querer muito estar ao Seu lado, e participar das boas-novas que Ele anunciou, das promessas que em breve irão se cumprir. Trata-se de um compromisso que assumimos quanto aos nossos sonhos de cristãos. Esse é o vínculo entre a salvação e o ser humano: o ato de entregar o ser a Cristo, por inteiro, demonstrando nosso interesse em estarmos para sempre com Ele. Não estou dizendo que o seu coração vale um real, nada disso! Mas entregá-lo a Deus pode ser tão fácil quanto desembolsar essa quantia módica, se você o fizer movido por amor. E conhecendo a esse Deus maravilhoso, não há como não amá-lO!

Sim, a salvação é gratuita, é dom de Deus. Mas exige de nossa parte um aceite indispensável, claro e total. Uma entrega tão profunda que seja visível aos olhos de todos os passantes. E creia, o amor que provém de Deus transpira por todos os poros, é notório e contagiante.

Que nesta nova semana você possa entregar-se mais uma vez a Jesus, e renovar com Ele o pacto da salvação. Isso fará sua semana muito mais feliz. Assim como a minha, que começa maravilhosa, especialmente depois que consegui me matricular num dos cursos de música barroca, justamente o de canto, que eu mais queria. Pois é, um dia depois do incidente com a senhora da história ai em cima, os organizadores abriram novos prazos, e eu consegui fazer minha inscrição. Mas é claro, eu tinha que fazer meu drama, hehehe.

Uma semana iluminada,

Luciana