domingo, 24 de junho de 2001

O plano

Há quem deteste o carnaval, eu abomino as festas juninas. Nunca entendi esse fascínio por soltar bombinhas ensurdecedoras, dançar quadrilha, e comer canjica que não tenha sido feita por minha avó. Tá, eu sou chata, isso não é novidade, mas tenho lá meus traumas com festa de São João.

Naquele ano eu havia encontrado um motivo muito forte para crer que minha família não gostava de mim. Desses pensamentos monstruosos que nos invadem quando temos oito anos. E já estava cansada de sempre apelar para uma terrível dor de cabeça, uma lacerante dor de barriga, ou outra dor qualquer que chamasse atenção dos meus pais para sua filhinha à beira da morte. Suspirei pensando que eles também já estavam cansados do meu cardápio de dores imaginárias... então era hora de uma decisão drástica.

Arrumei minhas roupas em dois sacos plásticos de supermercado. Peguei uma maçã escondida na geladeira, os olhos brilhando por pegar uma maçã interinha só para mim, quando a regra era dividí-la em três com minhas irmãs. Cruzei o portão da minha casa e olhei para os lados, indecisa: e agora, para onde ir? Cogitei algumas possibilidades, mas tudo parecia assustador demais naquela noite de fogueiras crepitantes. Sentei sobre minhas mochilas em frente ao muro, para pensar, e olhava a quadrilha que dançava animadamente na rua embaixo.

Como acontece até hoje, logo após eu ceder aos meus impulsos, me senti ridícula. omeçou a fazer frio, e a alegria daquele povo dançando alheio a minha dor, me irritava profundamente. Decidi que o melhor era ficar ali e esperar mais um pouco. Em breve eles sentiriam minha falta, eu ouviria gritos me chamando, vozes alteradas, portas batendo... sorri. Aí sim eu apareceria, e todos me olhariam consternados, me abraçando, chorando e pedindo perdão por terem me magoado.

Um menino passou e soltou uma bombinha bem perto de mim. O susto e o frio me faziam suar e tremer... talvez já tivessem passado várias horas, por que eu ainda não ouvia os gritos aflitos a minha procura? Olhei mais uma vez a quadrilha e peguei a maçã, disposta a saborear ela toda, como nunca dantes, superior a minhas pobres irmãs... minhas irmãs... o que elas estariam fazendo agora? Comecei a sentir saudade, e não consegui comer mais que uma terça parte da fruta. Era como cometer um crime me apossar da parte delas. "Cadê os gritos???" e eu decidi voltar, porque com a barulheira daquela quadrilha lá embaixo, eu não iria escutar o choro aflito de todos a minha procura.

Cruzei o portão da minha casa e entrei vagarosamente, os sentidos aguçados. Vozes tranqüilas e alguns sorrisos pareciam vir da cozinha e eu me dirigi até lá. Meu pai brincava com minhas irmãs enquanto minha mãe lavava a louça, no mais perfeito e feliz cenário de família "american style life". Soltei as mochilas, minha mãe olhou para mim.

- Ahn, você está aí. Venha enxugar a louça.

E eu comecei a sentir uma dor insuportável e mortífera no pé...

O ser humano, mesmo as crianças mais crescidas, têm uma propensão a resolver as coisas com aquela saída estratégica pela direita. É orgânico: por natureza nosso sistema nervoso nos condiciona a lutar ou fugir, portanto temos cinquenta por cento de chance de escolher debandar. Mas em se tratando de nossa mente, coração e espírito, a fuga nunca é a melhor solução. Não importa quão longe você vá, os problemas continuarão existindo até que você decida encará-los. Não adianta querer que sintam dó de você e te deixem em paz, ou que caia
das nuvens uma resposta certa. É mais fácil a gente cair das nuvens, e uhh , como dói essa queda do céu da ilusão, como dói se dar conta que apesar de todas as mentirinhas inventadas para si mesmo, o problema ainda está lá, rindo da sua cara...

Também não é o caso de querer virar super herói e sair voando. As coisas são bem mais difíceis de resolver se tentamos fazer isso sozinhos. Antes de mais nada, troque seu plano de fuga, por um plano mais eficaz: o plano de Deus. Experimente, ao invés de fugir e protelar, tomar decisões auxiliado pelo Seu Grande Amigo Estrategista. Ele então mostrará as ferramentas e o apoio preciso – humano e divino – para te ver vencer. As coisas podem até não sair como você esperava, mas com certeza só acontecerá o que for melhor para você a longo prazo.

Nesta semana, convide Jesus para pôr um ponto final naquele (s) problema (s) mal resolvido (s), que você vive adiando. E se parecer que não há saída, resista ao plano de fuga; confie no plano D. De Deus.

sábado, 16 de junho de 2001

Magistrais

Um amontoado de estudantes que haviam acabado de sair das salas de aula, disputavam um lugar sob a sombra do ponto de ônibus. Eu me comprimia num canto, com aquela placidez conformada de quem espera o prenúncio de um pará-choque na linha do horizonte. Foi quando reparei na voz tímida e aguda ao meu lado. Olhei, e me causou
admiração como a atitude dela se esforçava para dar força àquela voz miúda: - Serei juíza!

Seu Manual de Direito impecável, um fichário grosso e o estojo transparente deixando ver suas canetas organizadas, acabavam de compor o estereótipo perfeito de uma aluna de Direito deleitando seu primeiro semestre na faculdade. Apesar do calor e do ônibus não chegar, eu sorri enternecida, pensand nessa vocação para a magistratura que todo o ser humano tem, e que o acadêmicos de Direito aspiram com delícia.

Por causa do pecado, o ser humano entende as leis como meio de satisfazer sua ânsia de poder. Por isso todo mundo que tem suasnormas, por mais simples que sejam – normas de conduta, religiosas, morais – sente coceiras de citá-las, para sentir o gozo de sujeitar o vizinho a elas. Das leis que nos são dadas, abstraímos uma autoridade de cobrá-las a todos os demais, como se isso nos aproximasse da
glória de quem as criou. Se submeter a todas as regras (e quanto mais duras, melhor) vale a pena ao paladar pecador, quando este se depara com alguém que ousa não fazer o mesmo: é então que degusta-se o perseguido momento de se tornar juiz do semelhante.

O que a Bíblia fala sobre essa nossa tendência inata para julgar? Oapóstolo Paulo, em suas cartas, nos dá duas visões do tema. A primeira, está em I Cor. 4:5: "Portanto nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não só trará à luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá de Deus o seu louvor". Jesus já advertira sobre isso, como lemos em Lucas 6:37; "Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados." Qual o motivo desse conselho? Ora, no nosso ordenamento jurídico, um dos motivos que impede o juiz de julgar determinada causa, é fazer parte dela. Espiritualmente falando, todos partilhamos da mesma culpa, o pecado em suas mais execráveis formas, e só Deus, o Supremo Juiz, tem competência para nos julgar a todos. Só Ele tem acesso aos desígnios do coração, e conhece as coisas ocultas que nossa débil visão não é capaz de enxergar. Quando ignoramos esse impedimento e, do alto de nossa injustiça presunçosa, persistimos em sentir o sabor do domínio, transformamos o ato de julgar numa forma insidiosa de acusar.

Esse tema me lembrou o filósofo e escritor Kafka, que em seu livro "O Processo", conta a narrativa da vida de um homem o qual, ao acordar certo dia, descobre que está sendo processado, embora não tenha conhecimento do crime que cometeu. A estória, com os típicos absurdos de Kafka, toma ares de loucura à medida em que se desenrola (ou enrola ainda mais!): uma justiça paralela, decadente, infundada, comandada pela vontade de homens inacessíveis, onde não há o menor senso de equidade, nem o réu pode se defender, apenas aguardar o favor dos juizes se estes simpatizarem com o infeliz. No fim, o personagem é condenado à morte sem ter tido chance de provar sua inocência, sequer saber qual fora seu grande crime. É nesse ponto que nos damos conta que nós mesmos representamos essa justiça mesquinha e obscura, alojada nas trevas pecaminosas do nosso ser, e Joseph K. representa as pessoas que, por nossos métodos mais covardes, condenamos ao degredo, à margem dos nossos conceitos (forjados) de conduta correta ou cristã. Esse tipo de julgamento condena, antes de tudo, a quem o faz. A sentença, sem que se aperceba disso, recai sobre quem a profere. Comprovaremos isso num breve e verdadeiro Juízo...

Mas Paulo ainda nos fala algo sobre julgamentos: "Ou não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? ... Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos?" I cor 6:2,3. Paulo se refere à profecia de que trata Apocalipse 20:4, quando após a Vinda de Cristo, os filhos de Deus considerados justos, e tendo sua natureza corruptível já
transformada à semelhança da perfeição com que foram criados, receberão poder para julgar todos os atos dos ímpios, inclusive Satanás e seus anjos. Não é interessante reparar que, para que venhamos a ser dignos de julgar, precisamos enquanto pecadores, nos abster disso? Enquanto carregamos a mácula do pecado, não estamos habilitados para discernir conforme a Justiça Divina. Somente Ele, depois de nos tornar inteiramente santos e livres da nossa natureza contaminada, é quem nos dará poder para exercer a função de juizes das almas.

E quando uma posição administrativa na igreja parece sugerir o encargo de julgar as pessoas? Quando eu precisar, de fato, formar um juízo de valor sobre a atitude ou vida de alguém visando solucionar problemas ou tomar decisões quanto a vida desse alguém? Creio que ainda assim prevalece a assertiva: não julgueis. Enquanto aguardamos o tempo em que Deus nos capacitará para perscrutar corações, temos uma missão a cumprir, que tem sido bastante negligenciada: amar as pessoas, ouvi-las, orar com elas, chorar com suas angústias, ajudá- las a ver o Cristo Vivo que habita em nós. Ele mesmo nos deu o exemplo de como agir quando falou: "E, se alguém ouvir as minhas palavras, e não as guardar, eu não o julgo; pois eu vim, não para julgar o mundo, mas para salvar o mundo"(Lucas 12: 47). Se o próprio Deus feito Homem levava a Verdade e exercia seu ministério sem se preocupar em julgar os que a ouviam, que diremos de nós, míseros pecadores? Não é impondo a minha verdade e capacidade de cumprir normas aos outros, que estarei executando a missão que Ele designou. Nosso dever é amar e deixar que o Espírito Santo faça a parte que lhe cabe. Hoje há urgência de se imitar Jesus: devemos nos preocupar em salvar ao invés de julgar, esse deve ser o parâmetro de qualquer decisão que envolva outra vida que não a minha. Líderes e membros de igreja, devem rogar a Deus sabedoria para julgar questões
administrativas, e inteligência para, ao considerarem a situação de um pecador como eles, buscarem modos de salvá-lo, ao invés de estratagemas para julgá-lo.

Julgar é colocar um jugo sobre as almas. Especialidade dos fariseus hipócritas, "Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem aos ombros dos homens; mas eles mesmos nem com o dedo querem movê-los" (Mateus 23:4). Salvar, é oferecer o fardo leve da paz – que só pode ser dada por quem conhece bem Sua Fonte (Mateus 11:30).

Uma semana iluminada!

Luna

sábado, 9 de junho de 2001

Não lhe quebrei as mãos

Considere as estatísticas: é tão raro um brasileiro comprar um livro novo, sem ser movido necessariamente por obrigação ou vínculo com alguma instituição educacional, que naquele dia eu me sentia verdadeiramente uma privilegiada. Com computador num país de desnutridos, com acesso a internet num país cuja maior prestadora é a Embratel (mas presta mesmo, hein?), com dentes no país do "INAMPS", viva num país de alta taxa de mortalidade infantil e com a ousadia de um livro novinho debaixo do braço, no país do carnaval-e-futebol! Comovente.

Me refiro ao dia em que comprei "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século". O tema era tentador demais para esperar chegar ao sebo. Juntando minhas minguadas economias eu cometi esta pequena loucura orçamentária e resolvi ler o livro sem pressa, saboreando cada centavo que valeu suas páginas. Somente ontem, depois de uns 6 meses foi que o terminei. É verdade que ali há conteúdo humano (em excepcional forma literária) suficiente para tecer diversas reflexões, mas um conto em especial me chamou atenção.
Não vou cometer a insanidade de resumir uma obra de Érico Veríssimo, mas apenas para economizar espaço e a sua paciência, me permito traçar um esboço da estória. Esta fala de pais presenciando o concerto que consagra seu filho como um pianista célebre. Pai e mãe num camarote, estranhos àquele elitista mundo artístico, mas completamente absortos na contemplação da glória de seu virtuose rebento. Antes, tão seu menino, seu filho, agora revelado para um mundo desconhecido, rico, culto, superior, onde se tem o privilégio de ser mais. E sabe, nem os pais escapam a um olhar cobiçoso sobre a glória (tudo bem, eles merecem)... . Ali, ocultos na sombra do teatro, eles reclamavam para si parte dela, isto é, ao menos buscavam justificativas para sorver uma terça parte que fosse daqueles aplausos.

A mãe orgulhava-se do seu quinhão: sempre fora dedicada, trabalhando noite e dia para permitir ao seu filho chegar até onde ele estava. Ouve cada nota saboreando a sensação de mãe e mecenas, superior ao superiores que agora estavam completamente dominados pelas mãos de seu filho. O pai, porém, não compartilhava deste orgulho. A vida toda estivera alheio à função paterna, vencido pelo vício da bebida, humilhado pela incapacidade de deixá-lo e reconstruir sua moral. Cada nota que ouvia lhe lembrava o filho que ele nunca amparou. Chorou, por fim, vencido pelo fracasso.

Mas uma lembrança iluminou-lhe o semblante: uma noite mal dormida, em companhia da mulher e do filho, dividindo com eles uma cama pobre e estreita. Nesta noite ele sentiu que as mãos do bebê lhe roçavam as costas, e com medo de deitar sobre elas, ficou acordado até a manhã, desconfortável, apreensivo. "Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho, hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis... não podia ser o artista que é". E sorri satisfeito com sua partícula de glória.

Fiquei pensando com que facilidade nós nos acomodamos à idéia de que nos tornamos bons por condutas negativas. Quando uma voz ousa perguntar o que fizemos por nosso semelhante, automatizamos um: "Não matei, não roubei, não feri, nem interferi - eu não lhe quebrei as mãos", e o deixar de fazer nos satisfaz a consciência. Mas a omissão pode ser uma forma cruel de pecar, tanto que Jesus, ao falar sobre o juízo, a condenou veementemente em Mateus 25:41 – 45: " Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos; porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; era forasteiro, e não me acolhestes; estava nu, e não me vestistes; enfermo, e na prisão, e não me visitastes. Então também estes perguntarão: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou forasteiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos? Ao que lhes responderá: Em verdade vos digo que, sempre que o deixaste de fazer a um destes mais pequeninos, deixastes de o fazer a mim."

Podemos confiar nosso cristianismo ao simples "deixar de fazer"? Se deixamos de fazer o bem, estamos pecando por omissão. Se deixamos de fazer o mal, estaremos sendo melhores que as ostras, esquilos e nematelmintos? Como seremos mais racionais que eles, se não percebermos que a vitória do livre arbítrio não é deixar de cometer a injustiça, mas decidir fazer o bem?

Oro para que nesta nova semana consigamos fazer mais por nosso próximo que não lhe quebrar as mãos. Que as mãos que não se intrometem, aprendam a se comprometer. Que as mãos que não apedrejam, aprendam a afagar.

segunda-feira, 4 de junho de 2001

Um compromisso com Margarete

Eu estava em um Sábado realmente atarefado. Passei a noite de sexta-feira preparando detalhes da escola sabatina e pela manhã bem cedo estava na igreja para providenciar que tudo estivesse em ordem. Participei da classe de professores, regi os momentos prévios de louvor, certifiquei-me que os responsáveis pela abertura haviam chegado, tudo conforme eu planejara.

Depois de debatida a lição semanal com minha classe, me dirigi apressadamente até a mesa de som, e enquanto confirmava a música especial que seria cantada para as visitas, dava as últimas instruções às pessoas que fariam o encerramento da escola sabatina. Já sentia aquele gostinho satisfeito de missão cumprida: agora eu só tinha que reger a congregação no hino final, dar os avisos com respeito às programações da tarde, fazer o serviço de cânticos congregacionais e sentar (que momento aguardado!) para assistir o sermão. Foi então que apareceu Margarete.

Não vi quando ela chegou, mas ao levantar os olhos me deparei com seu rosto quase colado ao meu. Sem dar tempo para que eu reagisse, ela segurou meu braço e me olhou tensa, os lábios trêmulos murmurando que precisava falar comigo. Nesse momento estavam anunciando o hino final, que eu deveria reger, com aquele braço que Margarete prendia. Suas mãos me apertavam com força, me machucavam, como se quisessem também eles me falar de uma grande dor. Eu a olhei com ternura e espanto, e tentei dizer que falaria daqui a pouco, assim que...

- Não! Eu preciso falar com você agora! – disse ela enquanto grossas lágrimas desciam de seus olhos – você falou de oração, disse que Deus ouve a oração feita com fé, citou vários homens que oraram e receberam uma resposta! Eu preciso que você ore comigo, eu não sei mais o que fazer...

A essa altura eu também não sabia o que fazer. A plataforma que encerrara a escola sabatina olhava para mim esperando uma atitude, provavelmente sem entender a presença daquela mulher desconhecida ao meu lado, me impedindo qualquer ação. E eu permaneci dividida entre a aflição deles e de Margarete, que sem o menor pudor, segurou agora meus dois braços e contou-me que viera à igreja naquela manhã fugindo do marido, mas tinha medo de voltar para casa com sua filha. Ele bebia muito, e ficava violento, tinha ameaçado-as de morte. Enquanto eu cumpria minha tarefa de professora da classe bíblica, Margarete ouvira eu falar do poder da oração, e se convencera que seu caso tinha solução. Eu, sem perceber, lhe mostrara um feixe de esperança, e agora ela exigia, reclamava, implorava que eu lhe desse mais, e provasse que aquelas palavras também eram para ela.

A igreja começava a se agitar, e um burburinho de cabeças inquietas fez um dos irmãos que estavam na plataforma encaminhar-se até nós duas, me inquirindo com olhos angustiados sobre o que estava acontecendo. Ele me estendeu o hinário aberto. Eu me ajoelhei ali mesmo com Margarete. Segurei suas mãos tentando lhe passar toda a segurança de que ela precisava, e orei com toda a calma de que seu coração tinha sede. Enquanto orava, senti que o Espírito Santo me fazia interceder por ela com palavras certas, as quais também me encheram de infinita paz. Quando tornei a olhar para Margarete, ela sorria o sorriso. O irmão que trouxera o hinário, também, enquanto terminava de cantar com a igreja a última estrofe do hino.

Ainda tive tempo de lembrar do apóstolo Paulo, que como eu, andou por uns tempos meio estressado por causa da Igreja. Perfeccionista que era, queria sempre o melhor para Deus, e se esforçava para cumprir rigorosamente suas funções e compromissos. Certo dia, porém, Deus simplesmente o impediu de fazer o que queria. Ele agendou uma visita a Ásia, e um grande trabalho evagelístico Bitínia, "mas o Espírito de Jesus não o permitiu" (Atos 16:7). Há poucos dias, Paulo havia brigado com o irmão Barnabé, porque este se recusara a fazer as
coisas do jeito que Paulo queria. E agora Deus ensinava a Paulo quem era que agendava as coisas importantes na Igreja. Qual a Vontade que prevalecia ali. Qual olhar discernia a necessidade a ser suprida. E Paulo deixou de se guiar por sua agenda, cargo ou compromissos, para ser conduzido pela vontade divina até o clamor: "ajuda-nos".

Mas eu nem tive tempo de dizer isso a Margarete, nem pude lhe dizer obrigada. Ela me fez um aceno rápido com a cabeça, saiu, e eu não a vi mais durante todo o culto. Pensei que gostaria muito de ter uma nova oportunidade de abraçá-la, ouvir dela que tudo ficou bem, e lhe contar que nunca eu me senti tão certa de meu lugar, como no momento em que me ajoelhei com ela. Lhe dizer que o seu clamor de ajuda, foi a forma pela qual Deus me ensinou, mais uma vez, que o Espírito sopra onde quer (João 3:8); fazer minha parte é apenas me deixar levar por Ele. Mas onde estava Margarete? Posso encontrá-la ainda em muitas mãos aflitas, e muitos olhos lacrimosos, em muitas vozes embargadas de dor... espero em Deus não estar ocupada demais com meus compromissos a ponto de deixar passá-la despercebida... Livra-a, Senhor, de minha indiferença!