domingo, 24 de setembro de 2000

E Deus criou o ódio.

“Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” Gên. 3:15.

Há cerca de um mês recebi, emocionada, uma caixa enorme de uns cem quilos. Bem, talvez menos, mas foi o que me pareceu pesar enquanto eu a levava para dentro do meu quarto. Nela estavam parte dos meus livros amados que eu tinha deixado em Natal quando parti, para não dar problema com excesso de bagagem. Abri a caixa e cada um que eu pegava era um suspiro e um abraço... passei um bom tempo matando a saudade deles quando me dei conta de uma coisa horrível! Dentre os livros que eu deixara separados para que minha mãe me enviasse, estava um, que é o meu preferido, minha relíquia mais preciosa, e foi justamente esse que ela esqueceu de colocar na caixa... meu “O Grande Conflito” de 1978, que pertenceu a duas pessoas antes de mim, uma delas um tio falecido, que não era adventista mas dizia ser esse, seu livro preferido depois da Bíblia.
Desalentada, liguei para minha mãe e mencionei o fato, mas acho que ela nem percebeu. No momento, ela ainda estava sob o impacto do seu próprio grande conflito, que, ansiosa, passou a me relatar.
Meus pais separaram-se há mais ou menos 6 anos, e meu pai passou então a conviver maritalmente com outra mulher. Acontece que, finda a paixão inicial e vindo a primeira filha, o relacionamento deles começou a ter dificuldades, até que meu pai saiu de casa novamente e foi morar sozinho. Mas arranjou uma namorada... uma garota de vinte anos, sem muitos atrativos físicos ou intelectuais, mas com uma característica importante o suficiente para conquistar um homem: carinhosa. Minha pequena irmã, no entanto, passou a apresentar sérios problemas devido à falta dele, e então, vencido pelo instinto paterno e na tentativa de acertar ao menos um pouco as coisas, ele voltou para a casa de sua segunda mulher, para tristeza da sua namorada.
Minha mãe sempre reagiu quase indiferentemente às atitudes de Don Juan do meu velho e amado pai (pelo menos era o que ela expressava). Mas naquele dia, quando preparava-se para sair para a igreja, D. Lindalva teve de reagir e tomar uma posição.
Sabrina, minha irmã mais nova, atendeu à porta uma garota que insistia para falar com minha mãe e foi chamá-la. Vestindo-se apressadamente, D. Lindalva vai até o portão e dá de cara com aquela menininha franzina, morena, minguada, com o olhar inseguro pelo nervosismo reforçando seus traços infantis. Era a namorada de meu pai. Depois de se apresentar e dizer que viera falar com minha mãe porque lhe disseram que ela era uma pessoa boa, e teve esperança que seria entendida, não controlou-se e começou a chorar.
Minha mãe a conduziu até a sala e lá chegando a garota se descontrolou ainda mais. Chorando convulsivamente, ela dizia:
- Por que a senhora deixou ele voltar pra a outra, por quê??? Ela vai acabar com a vida dele, ela quer se vingar dele e disse pra todo mundo que vai deixá-lo na pior! Eu o amo e quero vê-lo feliz, mas com ela ele nunca vai ser! Ele me falou que quer ficar comigo mesmo assim, mas eu disse a ele que não aceito porque ele voltou para aquela (...). Se ele tivesse voltado pra senhora eu não diria nada, porque a senhora é boa e é a esposa dele, mas para aquelazinha...
Minha mãe estava quase catatônica. Ela estava ali, na sala da sua casa, com a amante do homem que, para todos os efeitos, foi e é seu marido. E mais. Estava ouvindo da pequena que se ele tivesse voltado para a sua legítima esposa estaria tudo bem, porque poderia continuar exercendo sua função de amante numa boa, sabendo que não estaria concorrendo com outra amante, seria apenas o “complemento” da esposa. O pior? O pranto daquela garota era tão sincero, tão verdadeiro que comoveu minha mãe. E agora ela estava ali, na sala de sua casa, consolando a amante de seu marido. Dando-lhe conselhos e olhando-a como a uma filha, mesmo abominando as coisas más que aquela criatura tinha o potencial de fazer. Teve até vontade de abraçá-la, tamanha compaixão teve dela, mas limitou-se a falar-lhe longamente sobre o amor de Deus até que a garota parou de chorar e a olhava compenetrada.
- Bem, eu já vou embora – disse a namorada de meu pai – desculpa ter vindo aqui...
- Você não tem o que se desculpar. Esta conversa serviu para alguma coisa? Perguntou minha mãe.
- Sim, sim, com certeza! Eu estava muito angustiada quando cheguei aqui, agora estou em paz...
E minha mãe sorria aquele riso confuso ao telefone, falando para mim que não entendia porquê entre tantos seres humanos, justamente ela tinha que ser o instrumento para mostrar o amor de Deus àquela menina. Justamente ela, D. Lindalva (que detesta o tratamento de Dona), tinha que passar por aquela situação constragedora.. ela, que tem motivos de sobra para odiar o adultério, naquele momento teve um sincero amor maternal pela amante de seu marido.
E eu me emocionei com as coisas que essa atitude dela revelou: primeiramente que ela é um ser especial e um instrumento abençoado para transmitir o amor do Pai, acima de suas próprias vontades, egoísmos, mágoas, com uma sublime capacidade de perdoar – que talvez até então ela mesma desconhecesse. Segundo, que aquela menina não teria descoberto o amor de Deus de maneira mais eficaz em sua vida por outra pessoa, pois a atitude de minha mãe talvez tenha lhe revelado a força de um amor que até então ela desconhecia. E terceiro, com a atitude de minha mãe, eu enfim descobri um sentido forte, pessoal e até então desconhecido para aquela velha frase de púlpito: “Deus odeia o pecado mas ama o pecador”, mostrando que não só Deus, mas também nós somos capazes de fazê-lo.
Depois do homem e da mulher, houve ainda uma coisa que Deus criou no Éden: o ódio. Tendo o pecado atingido de forma fatal a raça humana, Deus providenciou que este sentimento brotasse no ser humano com uma direção bem definida: o próprio pecado.
Voltei esta semana ao Grande Conflito (mais uma vantagem da internet, que me deu o livro sem, infelizmente, me dar as páginas amareladas, sublinhadas e roídas de traça do meu exemplar) e notei uma parte em que a escritora Ellen G. White, comentando sobre o momento em que Deus pôs a inimizade na raça humana, escreve, inspirada pelo Espírito Santo:
“Deus declara: “Porei inimizade.” Esta inimizade não é entretida naturalmente. Quando o homem transgrediu a lei divina, sua natureza se tornou má, e ele ficou em harmonia com Satanás, e não em desacordo com ele. Não existe, por natureza, nenhuma inimizade entre o homem pecador e o originador do pecado. Ambos se tornaram malignos pela apostasia. O apóstata nunca está em sossego, exceto quando obtém simpatia e apoio, induzindo outros a lhe seguir o exemplo. Por este motivo os anjos decaídos e os homens ímpios se unem em desesperada união. Se Deus não Se houvesse interposto de maneira especial, Satanás e o homem teriam entrado em aliança contra o Céu; e, ao invés de alimentar inimizade contra Satanás, toda a família humana se teria unido em oposição a Deus.
É a graça que Cristo implanta na alma, que cria no homem a inimizade contra Satanás. Sem esta graça que converte, e este poder renovador, o homem continuaria cativo de Satanás, como servo sempre pronto a executar-lhe as ordens. Mas o novo princípio na alma cria o conflito onde até então houvera paz. O poder que Cristo comunica, habilita o homem a resistir ao tirano e usurpador. Quem quer que se ache a aborrecer o pecado em lugar de o amar, que resista a essas paixões que têm dominado interiormente e as vença, evidencia a operação de um princípio inteiramente de cima.
No coração não regenerado há amor ao pecado e disposição para acariciá-lo e desculpá-lo. No coração renovado há ódio e decidida resistência ao pecado.[1]
Portanto, é para isso que existe o ódio: para investir contra o pecado e não contra os homens pecadores. Deveríamos lembrar disso todas as vezes que nos sentíssemos tentados a odiar alguém. O pecado certamente levaria o homem a uma tendência para o mal, mas esse sentimento específico, que faz aborrecer com ardor, com uma intensidade enorme e uma repulsa insuportável, foi criado por Deus para, quando em comunhão com Ele, detestarmos o pecado. Satanás se aproveita desse sentimento e segue “semeando ódios, rivalidade, contenda, sedição, assassínio”, nos dando motivos para odiarmos uns aos outros, dirigirmos a força do ódio aos pecadores, que são seres falhos, mas acima de tudo são filhos de Deus e merecem ser amados como Cristo os amou.
Enquanto perdemos tanto tempo, espiritualidade e mucosa estomacal alimentando mágoas odiosas contra nossos inimigos e aqueles que nos ofenderam, Satanás regozija, feliz por desvirtuar o plano de Deus para nós e para o sentimento de ódio. Quando desaprendemos a perdoar, fechamos as portas ao Espírito Santo e deixamos de ser canais de salvação pelo amor de Deus, para sermos instrumentos do Maligno para a perdição de almas – inclusive a nossa própria, visto que tal mácula não poderá manchar o caráter do ser que pretende entrar no Céu.
Atualmente, há pouca inimizade contra Satanás e suas obras e muita inimizade entre aqueles que um dia se propuseram a ser imitadores de Cristo. Que no decorrer desta semana tornemos por hábito lembrar que nossos alvos devem se elevar até a altura do caráter de Jesus e coloquemos em prática as palavras de Victor Hugo: “Eu jamais me rebaixarei fazendo com que os homens me façam odiá-los”.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

[1] WHITE, Ellen G. O Grande Conflito. Cap. 30 - O Pior Inimigo do Homem ,e Como Vencê-lo. São Paulo: CASA Publicadora. p. 505 – 510.
Você pode fazer o download desse livro, inteiramente grátis no endereço www.advir.com/sermões, no link Livros de EGW.

domingo, 17 de setembro de 2000

A porta dos sonhos.

“Entrai pela porta estreita... porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos que conseguem encontrá-la.” Mateus 7: 13 e 14.

Há algumas semanas, tive o prazer de entrar pela primeira vez no Teatro Municipal de São Paulo. Foi uma das experiências mais emocionantes da minha vida, e certamente o lugar mais bonito em que pus os meus pés.
Fizemos um pequeno tour pelas dependências e escadarias do Teatro, e eu andava com passos solenes de quem está realizando um sonho. Quando enfim nos acomodamos nas cadeiras, esperando o início do espetáculo, eu me vi invadida de arte e beleza por todos os poros. Não sabia para onde olhar primeiro (e meu olhar detalhista não me permite ver sem reparar minuciosamente), permanecia extasiada, sorvendo a emoção que cada pequeno canto daquele lugar me transmitia, e me deixei ser levada pelas melodias de Bach e Villa-Lobos, o meu ser na profusão emocional de quem tem o sonho realizado.
Lembrei de como foi difícil manter esse sonho, num mundo onde já não há lugar para esse tipo de beleza. Meu gosto pelo clássico sempre me fez parecer um dinossauro ET no meu meio, mas se isso não era cultivado por nenhum estímulo das pessoas (antes, muitas vezes ridicularizado), por outro lado eu não cedia à tentação de ser igual para ser aceita. Seguia sozinha, às vezes meio sem norte e até hoje com muito a aprender sobre as artes que sempre amei... mas segui, e por isso hoje tenho histórias de sonhos realizados para contar.
Pode não ser fácil achar a porta de seus sonhos! Pode ser que ela não pareça tão atraente como você pensa que ela deveria ser! Pode ser que você veja centenas de pessoas passarem indiferentes por ela e ache que aquela é a porta errada, preferindo seguir a multidão! Pode ser que você desacredite e esqueça do seu sonho, entrando por uma porta, para somente depois de estar lá dentro, descobri que ali não é o seu lugar... mas não consiga se colocar na contramão para voltar! Pode ser que, por equivocar-se quanto ao seu verdadeiro sonho, você passe a perseguir a porta errada e nunca chegue a encontrar o que você realmente quer!
Aprendi uma lição sobre a porta dos meus sonhos na primeira vez que fui a um teatro: o Teatro Alberto Maranhão, em Natal. Vi numa chamada na TV que a orquestra sinfônica iniciaria uma série de apresentações gratuitas no Teatro, e logo me dei conta que não ia adiantar ficar esperando que alguém me acompanhasse até lá. Peguei o ônibus e cheguei quinze minutos antes da apresentação, mas as portas do Teatro estavam fechadas, e tive que esperar numa fila do lado de fora. Quando as portas principais se abriram, todos entraram de uma vez, e eu, sem saber para onde ir, resolvi segui um pequeno grupo que me pareceu já ter ido ali outras vezes... nem reparei que eles estavam vestidos bem mais elegantemente que eu; meu olhar se dirigia para cada detalhe daquele lugar lindo, que até então , era o mais bonito em que eu já havia posto os pés. E eu estava emocionada demais para prestar atenção a qualquer coisa que não fosse arte...
A fachada interna do Teatro me apareceu magnífica, cheia de portas e escadas. As pessoas entravam por lugares diferentes, tentei entrar pela porta principal mas um educado funcionário avisou-me que as cadeiras ali já estavam todas reservadas para as pessoas que tinham adquirido os ingressos antecipadamente. Então dirigi o olhar novamente até o pequeno grupo que subia lenta e distintamente por uma escada lateral. Segui-os, tentando fazer uma cara de quem sabia muito bem para onde estava indo. O grupo parou diante de uma porta e certa funcionária do Teatro abriu-a , sorridente. Eu, logo atrás, fiquei comovida com a recepção calorosa que era dada às pessoas ali naquele lindo Teatro!! E entrei com o elegante grupo pela porta, o qual só se deu conta da minha presença quando estava prestes a se acomodar em suas não menos elegantes cadeiras. A funcionária, com um sorriso já não tão espontâneo, olhou para mim e disse:
- Você deve estar enganada quanto ao seu camarote... este é o do deputado fulano e sua família... posso ajudá-la?
Fiquei tão azul quanto a deselegante blusa que estava usando e expliquei que me dirigi até ali porque “lá embaixo” todas as cadeiras estavam ocupadas. A moça sorriu para o deputado e sua família, que me olhavam de cima a baixo, pediu desculpas a eles e me disse:
- Venha, vou te acompanhar até a galeria...
E desde então tenho estado mais atenta na procura pela porta que me levará até o objetivo sonhado, mesmo que ela seja uma humilde e pouco atraente porta de galeria. Foi lá dentro que eu assisti, em pé, duas horas de sonho melódico.
A Bíblia nos fala de homens que, certo dia, também tiveram dificuldades em achar uma porta, e por não perceberem que estavam perseguindo a porta errada, acabaram por perder a própria vida e o sonho de Deus para eles.
Naquele dia em Sodoma haviam duas portas em evidência perante o Céu: a porta da casa de Ló e a porta de saída da cidade. Deus mandou dois anjos baterem à primeira, para conduzirem os justos pela segunda, a fim de que eles fossem salvos. No entanto não havia ali muitos interessados na porta de saída. Quando os homens daquela cidade se deram conta que haviam dois seres hospedados na casa de Ló, aquele estrangeiro metido que queria ser juiz de tudo, cercaram a casa do servo de Deus e puseram-se a ameaçá-lo, exigindo que lhes fossem entregues os anjos para que estes fossem abusados sexualmente. Ao arremeterem-se contra Ló, tentando arrombar a porta de sua casa, os anjos o protegeram levando-o para dentro, olharam um para o outro e conversaram mais ou menos assim:
“É o seguinte: esses homens há tempos perderam seus nobres sonhos de vista. Deixaram-se contaminar pelo pecado a tal ponto que abandonaram os objetivos de Deus para eles, e até mesmo os mais novos não têm forças para resistir, antes se deixam levar pelos pecados dos mais velhos. Agora todos eles tentam arrombar a porta da casa de Ló, quando a porta que lhes daria salvação é a da saída da cidade. Estando eles cegos para verem essa verdade, vamos cegá-los para que não encontrem também a porta da casa de Ló, que eles perseguem com malevolente insistência.” (Gênesis 19)
E assim, os homens de Sodoma se cansaram à procura da porta equivocada, deixando escapar a oportunidade de obterem a salvação. E isso porque já não acreditavam que valia a pena sonhar em ser bom, temente a Deus, justo. Era moda ser mau. Todo mundo era mau! Todo mundo que praticava a injustiça, a imoralidade, a abominação, a maldade, o pecado enfim, era visto como forte, vencedor, poderoso. Somente um homem conseguiu preservar o seu sonho de ser uma pessoa melhor, fiel, temente e justo, e Deus lhe conduziu até a porta que lhe trouxe a vida, a esperança da realização de seus sonhos.
Há hoje muitas portas espalhadas pelo mundo, cada uma nos chamando a entrar. Mas apenas uma está em evidência perante o Céu, e todos os nossos sonhos convergem para ela, se acreditarmos e lutarmos por estes sonhos, não nos deixando influenciar pelos sonhos torpes da multidão, que segue em direção a portas que não levarão ao nosso lugar sonhado. Como está a nossa busca hoje? Estaremos tal como os homens de Sodoma, esgotando nossa forças em busca da porta errada, para a nossa perdição? Ou estaremos atentos para a estreita, humilde e pouco atraente porta da Salvação, pela qual passa o mundo indiferente?
Nessa busca não precisamos seguir os grupos que nos parecem mais elegantes, mais poderosos, mais em moda. A única coisa que precisamos é não perder de vista nossos sonhos, e então a mão de Deus nos guiará até o nosso almejado lugar.
Uma semana feliz e iluminada!!

Lux Lunae

domingo, 10 de setembro de 2000

Enquanto eu achava que tinha perdido a lente

“Aconselho-te que de mim compres... colírio para ungires os teus olhos, a fim de que vejas”. Apocalipse 3: 18

A hora avançava pela noite fria e chuvosa. O despertador tocou e ao contrário da maioria das pessoas, ao ouvi-lo, me preparei para dormir. Como costumo perder a noção do tempo quando estou na frente do computador, essa é a forma mais eficaz de eu me lembrar que é hora de descansar...
Terminei de ler as últimas linhas de um sermão do Pe. Antônio Vieira – uma semana e meia sem internet foi suficiente para me permitir ler o primeiro tomo -, desliguei o computador, escovei os dentes e fui tirar a lente de contato. Puxei a pálpebra.... nada. Puxei mais uma vez, com um pouco mais de força...a lente não se moveu. Respirei fundo, pensei na bênção que é ter uma córnea antes de murmurar, e puxei mais uma vez, piscando fortemente várias vezes. A lente de contato pulou abrupta e serelepe do meu olho esquerdo, indo cair silenciosamente sobre algum lugar do carpete cinza, que em nada contrastava com a cor dela...
Antes que eu pudesse me baixar para tentar localizá-la pelo reflexo, as luzes se apagam. “Ai, ai , ai...de novo não...”, pensei. Eu estava no meio de um black-out, com nove graus de miopia e sem condições de procurar a lente: se me movesse um centímetro que fosse, poderia pisar em cima dela e reduzi-la a pedacinhos, como o fiz com a malfadada penúltima; se me baixasse e tentasse apalpar os arredores, a pequena coisinha poderia ser afastada ainda mais pela minha mão, ou que é pior, grudar na palma e ser transportada para um lugar em que eu nunca viria a achá-la. Certa vez ao fazer isso, a lente enganchou no meu cabelo, o que eu só descobri quando fui penteá-lo e a vi caindo singelamente no ralo da pia... outra vez, minha irmã fez o mesmo e encontrou a lente dela semanas depois, totalmente ressequida, dentro de um livro de José de Alencar – esta pelo menos se perdeu de- forma culta. Se conseguisse, num salto olímpico, alcançar minha cama, deixando para procurá-la no outro dia, poderia estar levando-a comigo em minha roupa e aumentar a possibilidade de perdê-la, ou se ela ficasse no carpete, um inseto ou rato poderia dar-lhe um fim definitivo durante a noite.
Pensando no que seria sobreviver em São Paulo com meu grau de visibilidade, preferi ficar em pé, esperando a energia voltar, a providenciar um cachorro guia e uma bengala. E para não deixar o sono vencer passei a meditar nas palavras que há pouco acabara de ler, exatamente sobre essa condição incômoda e angustiante: a falta de visão.
Pensei que o espírito Santo, como Oftalmologista PhD em visão teológica, poderia classificar a deficiência visual espiritual tal como a classificam os médicos humanos. E assim, teríamos a miopia, o astigmatismo e a hipermetropia espirituais, cada qual com suas peculiaridades, cada uma podendo levar à cegueira definitiva.
Como míope de família de míopes, tenho de reconhecer as vantagens de o ser. Machado de Assis já dizia: “os míopes enxergam onde as grandes vistas não chegam”. Hehehe. Mas um míope espiritual corre o sério risco de deixar passar a presença de Deus sem vê-la, por não ser capaz de olhar além. Deste mal padeceram os fariseus, que estavam em contato direto com Deus aqui na Terra, ouvindo-O, tocando nEle, comendo do pão que Ele fizera surgir milagrosamente, sentindo Seu cheiro, enfim, sentindo-O com todos os sentidos, menos com a visão. Olhavam para Jesus, mas não viam mais que um homem petulante, um subversivo, um louco que acabaria como o Batista. Eram tão míopes espiritualmente que não conseguiam enxergam além da sua justiça própria, e Jesus em suas pregações já sabia da dificuldade em atingir os corações daquele povo que olhava mas não via (Marcos 4:12). Seria bom meditarmos se temos permitido que nossa visão veja a atuação de Deus em nossas vidas, Seu chamado, Suas advertências, Sua presença. Ao entrarmos na igreja – e ao sairmos dela – bem que poderíamos focalizar nossos olhos espirituais no motivo de nossa crença. Nosso Oftalmologista de plantão está pronto a nos ajudar nesse sentido...
Há ainda o astigmatismo espiritual, que não consegue perceber com nitidez a imagem do Pai, antes a vê de maneira confusa, às vezes equivocada, nebulosa. E acaba vendo uma coisa por outra, não discernindo as coisas espirituais e fazendo má-interpretação delas. Foi por esse defeito visual que os apóstolos , na barca de Pedro, que cruzava o Mar de Tiberíades, derrotada da fúria dos ventos e quase soçobrada do peso das ondas, viram assombrados um fantasma , quando apareceu sobre elas Cristo caminhando a grandes passos a socorrê-la. (Mc. 6, 49) Ora, perguntamo-nos, como podem homens que tinham acabado de ver Cristo operando o milagre da multiplicação dos pães, tremerem como meninos assustados diante do mesmo Cristo? Bem, mais tenazmente deveríamos nos perguntar porque nós temos essa estranha tendência de não enxergarmos a Cristo quando Ele escolhe o meio que acha melhor para guiar nossas vidas, e esse meio contraria aquilo que nós julgamos o melhor, o mais lógico, o mais racional a ser feito. O Espírito Santo não distribui panfletos na rua nem insiste gritando com plaquinhas, mas seu consultório oftalmológico está sempre aberto quando nos dispomos a fazer um exame.
Por fim há a hipermetropia espiritual, que faz a alma doente não ver a presença de Deus embaixo do seu nariz. Este mal nos faz incapazes de enxergarmos o poder de Deus no momento em que Ele está atuando. Foi a hipermetropia espiritual que fez Geazi, o moço que acompanhava o profeta Eliseu, passar uma das situações mais desesperadoras de sua vida. Vendo-se a si e ao profeta completamente cercados pelo exército sírio, com tropas, cavalos e carros, o rapaz correu desesperado em busca do profeta e o encontrou sentado, calmamente, descascando uma laranjinha. Depois de contar ao profeta o motivo de seu pavor, e encher Eliseu até ele não aguentar mais, este orou: “Senhor, peço-te que lhe abras os olhos...” II Reis 6:17. E o que fez Geazi? Sentou, pegou uma laranjinha para descascar e ficou admirando o monte cheio de cavalos e carros de fogo da parte do Senhor, para protegê-los de qualquer mal. A tropa divina estava lá o tempo todo, assim como Deus está o tempo todo presenciando as nossas vidas. O defeito está nos nossos olhos que nem sempre conseguem ver essa presença atuando poderosamente em nosso favor.
A condição da nossa atual Igreja Laodiceana, explanada em Apocalipse 3: 14 – 22 é realmente preocupante pois somos sérios concorrentes a cegueira dupla. Ou seja, além da cegueira provocada pelos males acima mencionados, ainda podemos estar cegos para a nossa cegueira: falta a fé para ver a Deus e para ver a condição debilitada de nossa visão, estando assim nós, cegos duas vezes!
Você já deve ter percebido que a raiz de todos os males visuais aqui estão num desvio na retina da fé. E qual a solução? Pode-se recuperar a perfeita visão espiritual de duas maneiras: ou através de uma queda bem dolorosa, a que todo cego está fadado, tal como aconteceu a Saulo (Atos 9:80), ou então pelo poder milagroso do colírio do Espírito Santo, dado de graça àquele que tem convênio na botica da cruz. (Apoc. 3:18). Jesus é o Deus que tem poder “para abrir os olhos aos cegos” Isaías 42: 7, e assim como o fez quando esteve aqui na Terra, continua até hoje operando com o mesmo poder, clamando com a mesma voz: “olhai, para que possais ver.” Isaías 42:18 e atuando com o mesmo amor para com aqueles que pedem: “Senhor, abra os meus olhos para que eu veja...” Salmo 119:18.
Um feliz e iluminado tudo!!!
Lux Lunae

domingo, 3 de setembro de 2000

Proteção e posse: um dueto

"Porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei; pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome" Salmo 91: 14

A segunda-feira, amanhã, trará rostos mais animados, pessoas mais sorridentes, conversas mais empolgadas... aproxima-se o feriadão!! 7 de Setembro é dia de comemorar, mesmo que não seja necessariamente a “Independência” do Brasil (comemorar-se-ía?). Para os que, como eu, ainda não traçaram planos de fuga para o próximo fim-de-semana prolongado, ou para os que pretendem apenas passar o máximo de tempo fazendo o mínimo possível, sugiro este passatempo:

JOGO DOS CINCO ERROS
O que há de errado nas cinco frases a seguir (excetuando-se alguma provável afronta gramatical)?
1. Senhor, protege-me durante a viagem.
2. Mamãe, proteja-me dos(as) namorados(as) que a senhora acha que me farão sofrer.
3. Meu amado marido, corra aqui!! Veja! Uma barata! Proteja-me!!
4. Minha amada esposa, proteja meu estômago: não use mais este azeite de dendê para cozinhar, tá bom?
5. Luciana, proteja seus livros das traças.

J Se a sua curiosidade não permitir esperar até o fim do feriadão, pode olhar a resposta a seguir.
Todas as frases contém o mesmo erro: são redundantes. O pedido de proteção é totalmente dispensável pois é dirigido a um ser que ama a coisa ou pessoa a ser protegida. Nestes casos, quem pede a proteção, quer mesmo ouvir a (re)afirmação deste amor.
Parece evidente, mas eu só vim reparar na prescindibilidade dessa redundância há algumas semana quando o carro de uma pessoa muito querida veio a sofrer pela segunda vez em pouco mais de um mês, sérias avarias. Um tanto quanto chateada, eu lhe sugeri que fizesse uma oração sempre antes de sair no carro! Ao que a mais que estimada pessoa me respondeu:
- E é Deus acaso um amuleto, como um pé-de-coelho ou uma fitinha de Nosso Senhor do Bomfim? Acaso Ele tem de ser lembrado de me proteger, só é acessível por uma oração ritualística que tem o objetivo de pedir a Ele a proteção que Ele já me dá como Ser que me ama? E se eu estiver pedindo algo que na verdade Ele quer permitir que aconteça por um motivo que só Ele sabe? Por que minha confiança nEle tem de estar condicionada a um ato meu, quando é pelos méritos do amor dEle que sou protegido?
Calei-me meditando nessas palavras e só pude vir a concordar. Entre os seres que se amam não se fala em proteção isolada, pois ela está contida no próprio amor, como consequência deste. Acontece que em nossa mente a proteção está muitíssimo associada à posse, assim, quando pedimos para ser protegidos por alguém que sabemos que nos ama, estamos apenas afirmando de alguma maneira que somos possuídos pelo amor àquela pessoa. Portanto o que realmente diz a oração de alguém que diz: “Senhor, protege-me durante a viagem” é “Senhor, lembra que Teu amor me possui, portanto cuida de mim!”, o que soa até ingênuo pois não precisamos lembrar a Deus disso, só queremos, no fundo, nos sentir mais seguros afirmando o que já sabemos.
Passei a me perguntar se eu não amadureceria muito mais se passasse simplesmente a confiar nEsta proteção divina e parasse de tentar dizer a Ele como deve me proteger. Pois na verdade quando dirijo a Ele um pedido específico sobre proteger-me, estou na verdade falando-Lhe do que EU acho que seja o melhor para mim. Mas a visão de Deus vai muito mais além, e o que eu mais temo que me aconteça, pode ser exatamente o que Ele quer permitir acontecer para que eu chegue mais perto dELe. E como um Pai que deixa o filho correr livre pelo parque, sem no entanto desviar o olhar de cima dele um segundo, Ele nos dá a liberdade de tomar decisões, que podem nos levar a grandes conquistas ou tombos homéricos. Em ambos os casos, Seus braços estarão sempre por perto, seja para partilhar a alegria de uma vitória ou chorar a dor de um fracasso. Como bom Pai e Pastor, Deus está muito mais interessado em nos orientar suficientemente para enfrentarmos as dificuldades, problemas e maldades do mundo e com isso moldarmos nosso caráter à semelhança do dEle, do que nos proteger em uma redoma feita por nossas próprias mãos.
Por fim, há ainda uma consequência bem interessantes do dueto proteção-posse.
Quando na relação com Deus deixou de haver amor, e agora só reina o legalismo, o ser não mais sente necessidade de ser protegido, mas de proteger a Deus. Isso por que se não há amor, nenhum ser se deixa possuir, antes desenvolve um inevitável desejo de poder. A pessoa que deixou de desejar ser possuída pelo amor de Deus, passa mais ou menos inconscientemente, a desejar possuir Deus. E isso ela faz se colocando no lugar de Deus: sentir-se como Deus satisfará seu desejo de poder. O sinal claro de uma pessoa que assumiu essa triste condição é a expressão da posse pela necessidade de “proteger Deus”. Passa a ser um exímio acusador de todos os irmãos que não se portam com a devida reverência, santidade, modéstia cristã, testemunho, mordomia, etc, etc... dá ares de calamidade a quebra de qualquer regra, praxe, detalhe litúrgico que seja, e está sempre a criticar a vida dos “pecadores” que teimam em afrontar a Deus com seus erros incorrigíveis, sem aperceberem-se que Deus não precisa ser protegido! E assim seguem os “protetores de Deus” , juizes poderosos, doutores em como possuir a essência divina da onipotência.
Numa frase, ao menos, eu concordo com Jung: “onde o amor domina não há desejo de poder. Onde o poder domina, falta amor. Um é a sombra do outro.” Que possamos ser dominados pelo amor, que se deixa possuir, que é protegido pela simples certeza de existir, que está seguro pela fé da sua força uma vez sentida. Que o amor impere por sobre o desejo de posse e que possamos confiar cada vez mais na sua força protetora, nos deixarmos levar, guiados pela força de suas muitas águas até a Fonte de todo amor.
Uma semana feliz e iluminada!

Lux Lunae